Transparência e Seriedade em Kierkegaard e o Diálogo Existencial
- Victor Portavales Silva
- 19 de out.
- 6 min de leitura

Introdução – O Despertar do Indivíduo
Olá, pessoal! Sejam muito bem-vindos ao nosso estudo aprofundado sobre um dos pensadores mais radicais da filosofia moderna: Søren Kierkegaard. Hoje, vamos mergulhar em dois conceitos cruciais da sua obra: a Transparência e a Seriedade.
Mas não paramos por aí. Falaremos também sobre Psicologia Fenomenológico-Existencial, fazendo uma articulação conceitual poderosa, traçando pontes entre o rigoroso chamado de Kierkegaard à auto-apropriação e os fundamentos implícitos que ecoam nas preocupações centrais da fenomenologia da existência, como a busca pela autenticidade e o confronto com a própria verdade subjetiva.
Prestem atenção, pois Kierkegaard nos convoca a uma autoanálise rigorosa.
O Imperativo da Seriedade (Earnestness) e a Duplicidade Dialética
Para Kierkegaard, a seriedade não é apenas um estado de espírito, mas uma categoria existencial fundamental, intimamente ligada à verdade e à ação.
Transparência e Duplicidade de Propósito: A seriedade em Kierkegaard é frequentemente apresentada em contraste com a falta de seriedade ou a duplicidade de espírito (ou double-mindedness). A duplicidade, segundo Kierkegaard, manifesta-se em diversas formas:
Vontade do Bem por Recompensa ou Medo: O indivíduo que deseja o bem pela recompensa ou por medo do castigo é considerado de espírito duplo.
O Desejo de "Uma Coisa": A pureza de coração, que é o tema central de um dos seus discursos, é querer uma só coisa. A multiplicidade é sinônimo de duplicidade de espírito. Querer o bem "até certo grau" é uma forma de duplicidade multifacetada.
A Seriedade e o Estágio Religioso (A Duplicidade Consciente): Kierkegaard, em sua auto-interpretação da obra estabelecida no Ponto de Vista Explicativo da Minha Obra como Escritor, estabelece uma duplicidade (ou reduplicação dialética) que existe desde o início até o fim. Ele afirma ter sido, desde o princípio, um autor religioso, embora tenha começado com a produção estética. Esta produção estética serviu como uma "fraude piedosa", um incógnito, para enganar o leitor no sentido da verdade e, assim, despertá-lo para a seriedade.
O autor religioso utilizou pseudônimos para a produção estética, enquanto os Discursos Edificantes eram assinados com seu próprio nome. A ironia e a estética tinham, assim, um propósito sério e religioso. A sua missão era tornar as pessoas conscientes do essencialmente cristão.
A Seriedade como Garantia da Verdade: A reduplicação dialética, que consiste em manter a duplicidade (estética e religiosa), deve ser desfeita apenas de maneira a que a seriedade se conserve como garantia da verdade. A elasticidade da duplicidade dialética é grande demais para ser dominada por quem tem seriedade insuficiente.
O caminho para o religioso é para trás (regredindo) da especulação para o simples tornar-se cristão. Este movimento exige uma seriedade profunda, afastando-se da sabedoria do mundo.
A Transparência (Adquirir a Sua Alma na Paciência)
O conceito de Transparência está intrinsecamente ligado à famosa expressão kierkegaardiana: "Adquirir a Sua Alma na Paciência".
A Alma como Aquisição: O indivíduo não possui sua alma de maneira imediata; ele precisa adquiri-la. A alma é aquilo que se deve conquistar na paciência. Isso implica que a alma já existe, mas precisa ser conquistada através de um processo.
Adquirir a alma é uma tarefa que não pode ser realizada no exterior. O homem que possui o mundo não possui a sua alma. O mundo, em sua falsidade, expressa uma contradição: possuir e adquirir a alma simultaneamente. A aquisição da alma é um movimento interior.
Paciência como Condição de Aquisição: A paciência é a condição pela qual a alma é adquirida e a paciente posse da alma. A paciência é um pássaro pobre, uma virtude pobre, que não tem gestos exteriores, mas é incorruptível. A paciência é necessária porque a alma não se adquire de uma vez só, mas em um processo gradual.
A paciência deve ser a condição de aquisição. A paciência permite ao indivíduo permanecer na tranquilidade e aprender que a alma é, primeiramente, a posse de si.
O Desafio da Transparência (Conhecimento da Alma): A transparência é a exigência de conhecer a sua alma. Este conhecimento, no entanto, não é a aquisição. É apenas o pressuposto de que se há de viver.
O indivíduo que quer adquirir a sua alma, mas não se conhece, é vítima de um auto-engano.
A Natureza da Interioridade: O interior é o local onde a auto-contradição do temporal e do eterno é compreendida. A alma só pode ser possuída no modo de ser adquirida e adquirida no modo de ser possuída. A alma é, em essência, a propriedade do próprio homem. A diferença fundamental entre a alma e o mundo é que a alma tem a infinita profundidade da vida do mundo na sua diferença.
O indivíduo deve fazer a subtração do mundo (abstração do mundo). Quando o indivíduo adquire a alma, o mundo não possui poder sobre ele.
O Indivíduo e a Crítica da Abstração (Implicações Existenciais)
A seriedade e a transparência são conceitos que só se aplicam verdadeiramente sob a categoria central da filosofia kierkegaardiana: o indivíduo (den Enkelte).
A Categoria do Indivíduo: Kierkegaard dirige-se ao leitor como "aquele indivíduo que, com alegria e reconhecimento, chamo ao meu leitor". O indivíduo é a categoria cristã por excelência e é a única semente livre para o pensamento ético e religioso.
O Indivíduo é o ponto de partida dos discursos edificantes, focando-se no universalmente humano. É através da relação com o Indivíduo que se pode servir à verdade.
O Confronto com a Massa: A existência da alma e sua aquisição é confrontada com a multidão (a massa). Kierkegaard opõe-se firmemente à tendência da época em dissolver o indivíduo na coletividade.
A multidão, ou Massa, é considerada a verdadeira abstração e o lugar da mentira. O cristianismo estremece diante da abominação de abolir Deus e pôr em Seu lugar o medo da multidão.
A Exigência de Sair da Ilusão: A seriedade da vida exige o abandono da ilusão de se ser cristão, quando, na verdade, se vive em categorias puramente estéticas. A tarefa do autor religioso é despertar a atenção do homem que vive na ilusão, forçando-o a julgar sua situação.
O indivíduo deve ser confrontado com a verdade de que a vida deve expressar a seriedade. A seriedade, neste contexto, implica uma relação pessoal e direta com Deus, separada de qualquer caráter oficial.
Articulando com a Psicologia Existencial-Fenomenológica
Agora, vamos estabelecer a conexão conceitual com a Psicologia Fenomenológico-Existencial.
1. A Soberania da Interioridade e o Subjetivo: A Psicologia Existencial-Fenomenológica enfatiza a interioridade e a experiência subjetiva como primárias. Kierkegaard estabelece claramente que o caráter é interioridade. O processo de aquisição da alma (transparência) é radicalmente interior e se opõe à aquisição de bens exteriores.
A vida interior, que não pode ser facilmente divulgada ou quantificada, é onde reside a relação essencial com Deus. A autoanálise e o despertar para a soberana responsabilidade do indivíduo refletem a preocupação existencial com a autenticidade, onde o ser se constitui na posse de si.
2. O Caráter Radical da Escolha (A Seriedade do Ser): O campo existencial valoriza a decisão radical frente à angústia da liberdade. Kierkegaard, ao falar da seriedade, insiste que o ser cristão não é um status herdado, mas um tornar-se. A passagem da estética para o religioso, que é o problema central da obra kierkegaardiana, exige uma transição qualitativa e uma escolha que é incomparavelmente mais séria do que qualquer escolha estética.
Essa decisão deve ser tomada com uma seriedade absoluta, sem reservas, e implica uma disciplina rigorosa. A seriedade é, portanto, o reconhecimento da facticidade (o que se é) e a necessidade de agir em conformidade com o que se deve ser (o ideal). A falta de seriedade é como um equívoco existencial.
3. A Crítica ao Objeto Abstrato (A Massa): A Fenomenologia se opõe à redução do ser humano a categorias abstratas ou generalistas. Kierkegaard faz essa crítica através da categoria da Massa (Multidão), que ele chama de a verdadeira abstração. O indivíduo deve ser isolado do rebanho para reconhecer seu valor e sua responsabilidade diante do Eterno.
A transparência, vista sob uma ótica existencial, é a capacidade de não se enganar sobre o próprio estado no mundo. É a renúncia a ser um algo impessoal que se dirige à abstração da massa. A seriedade e a transparência obrigam o indivíduo a sair da zona de conforto, que é um estado de reflexão sem paixão.
O indivíduo kierkegaardiano (ou o si-mesmo que se constitui) é a unidade fundamental que resiste à dissolução na totalização moderna. A transparência para si mesmo é o ato de reconhecer que a vida é uma relação com o Eterno, exigindo a subtração do mundo.
Conclusão – O Legado
A jornada de Kierkegaard pela seriedade e transparência nos ensina que a aquisição da alma não é um evento único, mas um processo de tornar-se que exige paciência, subtração do mundo, e uma seriedade incondicional.
Essa é uma disciplina que é, em última análise, a autoconstituição do ser em sua relação mais íntima e responsável com Deus.
Embora Kierkegaard não tenha se dirigido diretamente ao campo da psicologia moderna, sua insistência na interioridade, na subjetividade da verdade, na radicalidade da escolha e na oposição à abstração da massa, fornecem os pilares conceituais sobre os quais a Psicologia Fenomenológico-Existencial pode construir sua compreensão da pessoa autêntica.
Kierkegaard nos desafia a olhar para dentro.
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Até a próxima, onde continuaremos a decifrar os segredos da existência!




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