A Clínica Daseinsanalítica
- Victor Portavales Silva
- 13 de out.
- 9 min de leitura

Introdução:
Olá e sejam muito bem-vindos ao nosso estudo aprofundado sobre a Clínica Daseinsanalítica! Vamos desvendar juntos os fundamentos dessa abordagem fascinante, que propõe um olhar radicalmente diferente sobre o ser humano e o sofrimento existencial, inspirada no pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger.
A Daseinsanálise não é apenas mais uma escola de psicoterapia. Ela é, na verdade, um exercício ôntico da Analítica Ontológica empreendida por Heidegger em sua obra seminal, Ser e Tempo (1927).
Nosso percurso hoje será dividido em módulos essenciais. Começaremos pela base conceitual — a distinção crucial entre Análise e Analítica — e exploraremos os pilares históricos estabelecidos por Ludwig Binswanger e Medard Boss. Por fim, mergulharemos na atitude clínica fenomenológico-hermenêutica que define essa prática.
Prontos para suspender o olhar científico-natural e embarcar na aventura do sentido? Então, vamos lá!
1. A Escolha Terminológica: Analítica (Analytik) versus Análise (Analyse)
Um ponto de partida vital para compreendermos a Daseinsanálise é entender por que Heidegger, ao investigar o modo de ser do homem em Ser e Tempo, optou pelo termo "Analítica" (Analytik) em vez de "Análise" (Analyse).
1.1. O Sentido Comum de Análise:
Na modernidade, influenciada por pressupostos cartesianos e funcionalistas, o termo "Análise" (como o sentido que Freud dava, por analogia com a análise química) tende a ser compreendido como uma decomposição em elementos mais simples. O objetivo é explicar o fenômeno (como um sintoma ou um comportamento) através da redução a essas partículas ou causas obtidas. Nessa ótica, o fenômeno original (a queixa, a fala do cliente) é perdido de vista, sendo pulverizado e reduzido a causas.
1.2. O Sentido Originário de Análise (Analisein):
É interessante notar que o termo grego analisein significa, etimologicamente, o destecer de uma trama (como Penélope fazia na Odisseia), libertar, ou soltar alguém de amarras.
1.3. A Opção por Analítica (Analytik):
Heidegger resgata o termo "Analítica" de Kant (da Crítica da Razão Pura). A Analítica para Kant buscava a decomposição da própria faculdade de entendimento para reconduzir os conceitos à sua condição de possibilidade.
É neste sentido que Heidegger compreende a Analítica: ela não visa à desintegração do fenômeno em elementos, mas sim a sua recondução ao seu caráter originário, ao seu sentido, à sua condição de possibilidade. A Analítica tece e destece para libertar o sentido que possibilita a trama da existência. Ela articula a unidade de uma estrutura, e não decompõe em elementos.
1.4. Daseinsanalyse como Exercício Óntico:
Heidegger define a Daseinsanalyse como o exercício ôntico da Analítica Ontológica. A Analítica do Dasein (Daseinsanalytik) é a explicitação filosófica das estruturas ontológicas (existenciais) do ser-aí. A Daseinsanalyse clínica é, então, a aplicação prática, na relação com problemas existenciais, que elabora tematicamente a existência factual do cliente, remetendo-a às suas estruturas existenciais-ontológicas.
2. O Ser-Aí (Dasein) e a Estrutura do Cuidado (Sorge)
A filosofia de Heidegger sustenta que o modo de ser do homem é a "existência" (Da-sein, Ser-aí). Existir não é um fato bruto; significa uma abertura originária ao ser dos entes, uma pré-compreensão do ser. A essência do existir humano é ser esta "clareira," uma abertura na qual o ente pode estar presente.
2.1. Existenciais Constitutivos:
A Analítica do Dasein investiga as características ontológicas que constituem o existir humano, chamadas de existenciais. Estes incluem:
• Abertura original ao mundo (Ser-no-mundo).
• Temporalidade e Espacialidade.
• Compreensão e Disposição Afetiva (Humor/Stimmung).
• Ser-com-o-outro (Mitwelt).
• Corporeidade.
• Ser-para-a-morte.
• O Cuidado (Sorge).
2.2. O Cuidado (Sorge) como Unidade Estrutural:
Heidegger designa a unidade existencial-ontológica do ser-aí como Cuidado (Sorge). O Cuidado não se refere a um modo de relação específico, mas sim à condição de ser aberto às possibilidades de relação. A fábula de Higino, citada em Ser e Tempo, ilustra essa estrutura fundamental: o homem pertence ao Cuidado enquanto viver.
O Cuidado ontológico é a condição de possibilidade para que possamos nos ocupar (com os entes simplesmente dados, Besorgen) e nos preocupar (com os outros, Fürsorge).
2.3. O Cuidado com o Outro (Preocupação/Fürsorge):
No trato com os outros homens, a preocupação pode assumir dois modos extremos:
1. Substituição (einspringt): Assumir as "ocupações" do outro, tornando-o dependente e dominado. Este modo é comum em terapias que aspiram a ter teoria e técnica que deem conta do sofrimento humano.
2. Anteposição Libertadora (vorausspringt): Não substituir o outro, mas colocá-lo diante de suas próprias possibilidades existenciais, ajudando-o a tornar-se transparente a si mesmo e livre. Este é o modo de cuidado próprio da clínica daseinsanalítica.
2.4. Projeto e Liberdade:
A noção de Projeto (Entwurf), essencial para Binswanger, também é vital. Ela aponta que as estruturas do ser do homem são investigadas em sua temporalidade, sendo a vida um projeto que desvela possibilidades. A liberdade, nessa perspectiva, não é um atributo da vontade humana, mas sim o ser do homem que pertence à liberdade. O ser-aí é, fundamentalmente, abertura, e estar doente é uma limitação das possibilidades de relação e, portanto, uma perda de liberdade.
3. As Tonalidades Afetivas Fundamentais: Angústia e Tédio
As tonalidades afetivas (ou disposição/humor) determinam o modo como experimentamos o mundo. Elas são descerradoras de mundo e fundamentais para a singularização.
3.1. A Angústia (Angst):
A angústia é uma tonalidade afetiva fundamental que anuncia a negatividade da existência. Ela rompe com as sedimentações do mundo fático, lançando o horizonte de sentido em uma insignificância radical, um esvaziamento. Ao fazer isso, ela desperta o ser-aí para seu poder-ser (sua finitude e indeterminação) e o conclama a apropriar-se de sua existência mais própria. A angústia, ao ser habitada e não evitada, pode arrastar o homem para a propriedade de seu ser, afastando-o da impessoalidade cotidiana.
3.2. O Tédio Profundo:
O tédio (principalmente o tédio profundo) é a tonalidade afetiva que, segundo Boss, abarca o homem em um mundo dominado pela técnica. Assim como a angústia, o tédio é descerrador de mundo. Ele desperta uma suspensão total do horizonte do existir, um esvaziamento radical do tempo, onde tudo é igual, tudo é o mesmo, igual a nada. Ele denuncia a totalidade inabarcável que nos assalta.
Heidegger sugere que, diante do tédio e da angústia, a resposta não deve ser a distração ou o excesso de ocupações, mas sim deixá-los ecoar, nos aproximarmos deles para que nos digam o que está acontecendo.
4. As Contribuições de Binswanger e Boss
A clínica Daseinsanalítica, designada assim por Binswanger em 1941, foi desenvolvida primeiramente por dois psiquiatras suíços.
4.1. Ludwig Binswanger: Projeto e Cuidado (Sorge)
Binswanger foi o primeiro a utilizar o conceito de Daseinsanalyse, originalmente filosófico e ontológico, em um sentido ôntico (na relação com problemas existenciais).
Ele se aprofundou em Ser e Tempo, focando nas noções de Projeto e Cuidado. Binswanger se opunha à psiquiatria médica preocupada com estatísticas e determinantes biológicos, buscando a compreensão das determinações existenciais no próprio ato de existir. Ele dialogou mais atentamente com a noção de tempo de Heidegger.
Apesar de seus avanços, Binswanger adicionou à estrutura do Cuidado (Sorge) a noção de amor como um originário, mais fundante. Heidegger e Boss criticaram essa inclusão, pois o Cuidado (Sorge) é a condição ontológica de possibilidade para os diversos modos ônticos do cuidado, incluindo o amor, a aversão ou a indiferença. Ao fazer isso, Binswanger manteve, em última instância, a ideia de uma subjetividade fechada em si mesma e recaiu em uma interpretação ôntica da existência. Em reconhecimento, Binswanger mudou o nome de sua abordagem para "Fenomenologia Antropológica".
4.2. Medard Boss: Tonalidades Afetivas e o Horizonte da Técnica
Boss deu continuidade à Daseinsanálise, mas com uma ênfase diferente, abordando as tonalidades afetivas, como a angústia e o tédio. Boss tomou para sua clínica a noção de espaço como atmosfera do horizonte histórico. Ele acreditava que, se na época de Freud as questões psíquicas estavam ligadas à sexualidade, em nossa época, a neurose do tédio é a situação que abarca a existência.
Boss reconheceu a dívida de sua formação filosófica com Heidegger e organizou os Seminários de Zollikon (1959 a 1969), onde discutiu a possibilidade de uma clínica psicológica baseada na fenomenologia hermenêutica.
4.3. Vestígios Psicanalíticos em Boss:
Apesar de sua fundamentação heideggeriana, Boss manteve alguns ensinamentos psicanalíticos em sua prática, como o uso do divã, as associações livres e a transferência. Contudo, ele redefiniu esses conceitos em uma perspectiva existencial.
• Transferência (Boss): Não é a transferência de sentimentos reprimidos e inconscientes, mas sim o cliente se encontrar limitado em suas possibilidades, percebendo o analista com a mesma limitação com que olhava seu pai ou sua mãe, mantendo o padrão da infância por não dispor de novas possibilidades.
• Resistência (Boss): Consiste na reação de repulsa do cliente frente às suas possibilidades. Não é a oposição ao acesso ao inconsciente (Freud), mas sim a renúncia às possibilidades peculiares, únicas e originais, refugiando-se no anonimato (Mitwelt) e no conformismo social.
5. A Atitude Clínica Daseinsanalítica
A Daseinsanálise atual se ancora na fenomenologia-hermenêutica de Heidegger, indo além dos vestígios psicodinâmicos. A clínica, nessa perspectiva, é muito mais estabelecida em uma negatividade (suspensão) do que em uma identidade positiva (método rígido).
5.1. A Suspensão da Teoria e a Atitude Fenomenológica:
Para proceder a uma clínica fenomenológica, é necessário suspender toda e qualquer teoria acerca da existência humana, para que seja possível se aproximar do fenômeno trazido pelo paciente, atento ao detalhamento do acontecimento. O analista deve ser antinatural, não diagnosticando nem interferindo; ele se posiciona de modo que o analisando ganhe voz em si mesmo.
A clínica pode acontecer prescindindo de teorias e pressupostos, através de uma postura antinatural que apenas mantém espaços de abertura para que novas possibilidades apareçam.
5.2. A Tarefa da Clínica: Destruição e Desvelamento:
A tarefa central da clínica daseinsanalítica consiste em:
1. O analisando ser o mais preciso possível em suas descrições.
2. O analista atentar para as interpretações do paciente, buscando a compreensão do que está em jogo.
3. Quebrar ou destruir os comportamentos ontológicos presentes nas descrições do analisando.
Essa quebra visa abrir um espaço para que o outro se conquiste em sua alteridade, sem conduzir ou mapear um caminho que leve a uma conscientização. O problema, nessa visada, é o aprisionamento em nossas histórias, sufocando o problema que somos. A clínica busca possibilitar que o analisando se aperceba de suas vivências próprias, permitindo que o instante e lugar do acontecimento se deem.
5.3. Hermenêutica e a Fusão de Horizontes:
Em uma postura hermenêutica, os horizontes de compreensão estão sempre presentes. O que se interpreta são os encontros e o choque de horizontes entre o que se fala e o que se escuta na situação clínica. Quando a fusão desses horizontes se dá de maneira integral, ela abre o espaço para que o outro apareça para ele mesmo. O analisando é a orientação, a medida.
5.4. Indicações para a Atitude do Terapeuta:
A atuação clínica daseinsanalítica se configura como um exercício da Analítica do Dasein no encontro, buscando lembrar o homem de sua vinculação com o ser, ampliando sua liberdade.
A atitude do terapeuta inclui:
• Atenção serena e desapego: Nada é supervalorizado ou excluído a priori por postulados teóricos.
• Não voluntarismo: O caminho se abre pelo diálogo, sem uma estratégia imposta.
• Tematização de sentido: Promover a desnaturalização dos sentidos previamente dados.
• Correspondência libertadora: Relacionar-se através do modo de cuidado de "antecipação libertadora," que devolve o outro a si mesmo e o libera para seus modos singulares de ser.
• Sustentar a atenção na serenidade, estranhamento, aceitação e compreensão.
A clínica busca tirar a psicologia do reino carismático e aleatório, mas rejeita a noção de psicoterapia como psicologia aplicada, visando efeitos determinados por controle e previsibilidade.
6. A Daseinsanálise e o Horizonte da Técnica Moderna
A Daseinsanálise opera uma crítica profunda ao pensamento científico calculante que domina a modernidade. Vivemos na "Era das Concepções de Mundo", marcada pela técnica (que impõe a aplicação da ciência) e pela redução de tudo (arte, história, religião) a vivências subjetivas e valores culturais. O sentido é reduzido ao que pode ser computado e controlado.
Neste horizonte, as demandas de sofrimento, como as compulsões, o tédio, e as depressões, estão ligadas ao nivelamento histórico do sentido. Tentar eliminar o sofrimento psíquico rapidamente, através de intervenções técnicas, é eliminar qualquer experiência que questione os limites do horizonte cotidiano, confirmando a natureza simplesmente dada do nosso existir.
O cuidado psicoterapêutico deve resistir a essa subordinação acrítica ao horizonte técnico e de consumo. A tarefa é acolher a angústia e o tédio, que são mobilizadores existenciais. A transformação (o processo clínico e o existencial) não ocorre pela vontade do analista ou do analisando, mas é mobilizada pelas tonalidades afetivas fundamentais, em um horizonte mais originário.
A Daseinsanálise nos convida a uma reflexão (o pensamento meditante de Heidegger), que busca não a eficiência ou a cientificidade, mas sim o rigor descritivo interpretativo para que o cliente possa se compreender e se apropriar de sua existência singular em seu estar-lançado, aceitando-se como responsável.
Como vimos, a Daseinsanálise, longe de ser um manual de técnicas, é uma atitude que sustenta a abertura do ser-aí para suas possibilidades mais próprias. Trata-se de um convite constante à reflexão, ao estranhamento e à desidentificação das objetivações que nos aprisionam, para que possamos nos re-cordar de nossa condição de Ser-com.
Esperamos que esta aula tenha ampliado seu horizonte de compreensão sobre essa clínica fundamental.
Essa reflexão faz parte do nosso 6º encontro do Curso de Introdução à Psicologia Fenomenológico-Existencial. Saiba mais e se inscreva na página do curso!
Obrigado pela companhia e até a próxima reflexão!




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