Fenomenologia e Estrutura da Mania
- Victor Portavales Silva
- 10 de out.
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Introdução ao Fenômeno da Mania
O estudo da mania possui raízes profundas. Desde a Antiguidade, na obra hipocrática, o termo mania já era usado para descrever alterações comportamentais, embora, historicamente, o uso pudesse englobar manifestações que hoje classificaríamos como delirium ou esquizofrenia.
O contexto da psiquiatria moderna, a partir de meados do século XIX, trouxe a necessidade de diferenciação. Kraepelin foi fundamental ao descrever a psicose maníaco-depressiva em seu tratado, como uma doença periódica de curso episódico, com períodos de mania e melancolia. Kraepelin reconheceu que a forma clínica clássica, a oposição evidente entre acessos maníacos e depressivos, não representava a totalidade das manifestações, que podiam incluir mania simples, melancolia, confusão mental, delírios acentuados e transições.
O Foco Fenomenológico: Essência e Estrutura
Em contraste com a abordagem epidérmica, que vê a mania apenas como um conjunto de sinais e sintomas e funções psíquicas autônomas, o “Capítulo 6 – Fenomenologia da Mania” da obra “Fundamentos da Clínica Fenomenológica” propõe a exploração da mania pela perspectiva da psicopatologia fenomenológica. O objetivo central aqui é evidenciar a essência e a estrutura do fenômeno, buscando as alterações observadas nas principais categorias fundamentais da consciência: temporalidade, espacialidade, corporeidade e intersubjetividade.
Minkowski e a Afetividade-Contato (Sintonia)
Um dos grandes nomes que influenciaram a fenomenologia da mania foi Eugène Minkowski, que se concentrou na oposição entre as estruturas da Esquizofrenia e da Psicose Maníaco-Depressiva (PMD).
• Minkowski, em diálogo com os conceitos de Kretschmer, substitui a ideia de oscilações periódicas pela noção de Sintonia. A sintonia é a presença do contato afetivo, a faculdade de vibrar em uníssono com o ambiente.
• A sintonia caracteriza toda a maneira de ser ciclotímico (predisposto à PMD) e se opõe à Esquizoidia, que, por sua vez, é a falta dessa "franja sintônica", levando a uma atividade pessoal rígida, fria, impregnada de fatores racionais e sem ressonância no ambiente circundante.
• Para Minkowski, tanto a Esquizofrenia quanto a PMD alteram a afetividade-contato, mas de formas diferentes. Na mania, a sintonia é superficial e muda a cada instante, desdobrando-se em um contato amplo e voraz.
A Temporalidade na Mania (Minkowski e Binswanger)
Minkowski: Aceleração e Perda da Duração Vivida
Minkowski dedicou sua obra O tempo vivido à exploração do tempo na psicopatologia. Ele define o tempo, ou devir, como um fluido que corre em direção ao futuro e distingue o tempo corrido do tempo vivido (uma qualidade, vivível apenas na introspecção).
Na mania, o que se observa é uma aceleração da atividade do sujeito. Essa aceleração determina um contato apenas instantâneo, no qual falta a penetração na experiência e a duração vivida.
• O paciente em mania é incapaz de viver um presente autêntico.
• Ocorre um descolamento da historicidade do passado e da abertura ao futuro.
• O modo de ser maníaco é pautado pela leveza e jocosidade, decorrentes da perda da influência do passado e do futuro sobre o presente.
Binswanger: A Fuga de Ideias e o Mundo Expansivo
Ludwig Binswanger marca a história da antropologia fenomenológica com a obra Sobre a fuga de ideias (1933). Ele buscou a essência da condição maníaca através da análise de um caso individual, investigando como a mania é uma perturbação que radicalmente altera as relações entre o Eu e o Mundo, vividas na expansividade e avidez da consciência maníaca.
Binswanger analisa o estilo global da manifestação de uma paciente em sua décima crise de mania, que se queixava de um fato banal (geleia servida em recipiente sujo). A paciente, ao se dirigir diretamente ao responsável pela cozinha (desconhecido), e não ao enfermeiro, revela um desmantelamento da complexa estrutura social.
• Estrutura da Existência Maníaca: Pessoas, objetos e situações são ligados em curtos-circuitos, perdendo-se as conexões intermediárias.
• Linguagem: A manifestação verbal é marcada por uma expectoração e pressão de fala (logorreia) que constrói um diálogo inautêntico.
• Espacialidade: Há uma apropriação do espaço; o mundo, "pequeno demais para a expansão do ser," aproxima suas distâncias. A rede de realidades tem "malhas maiores e mais flexíveis".
O Mundo Maníaco (Ey e Binswanger II)
Henri Ey: O Mundo Não Problemático
Henri Ey, ao comentar a análise de Binswanger, propõe que a mania é uma forma de existência não problemática.
• O mundo do maníaco abole todas as dificuldades lógicas ou reais; é um mundo direto, imediato e de otimismo.
• O mundo temporoespacial é sem limites, com um horizonte infinito e eterno. É o oposto do mundo estreito do melancólico.
• A impulsividade otimista constitui-se na trama da velocidade, do rápido e do súbito. O maníaco está em erupção, em uma efervescência existencialmente momentânea; não há nada de permanente ou definitivo.
• A instabilidade motora, a logorreia e a hiperprosexia (atenção exagerada) são os traços essenciais da estrutura antropológica do "ser garganta".
A Consciência Maníaca (Ey): Superficialidade e Perda da Profundidade
Ey também analisou a descomposição do campo da consciência na mania:
• Prejuízo nas funções de síntese e desestruturação da atividade reflexiva.
• As grandes sínteses da memorização e orientação são prejudicadas em suas funções elevadas (hierarquia de lembranças, enquadramentos temporoespaciais claros).
• A percepção do real é superficial. Falta à vida psíquica sua verdadeira dimensão: a profundidade, o que explica a volatilidade.
• A estrutura positiva da mania se manifesta no comportamento de jogo, onde fantasias são vividas como "uma realidade sem realidade". O mundo dos pensamentos e o espaço da ação têm fronteiras mínimas, permitindo ao maníaco a vivência de que tudo o que é pensado é traduzido em ação.
Binswanger: A Ênfase na Temporalidade Transcendental (1960)
Em sua obra posterior, Melancolia e Mania (1960), Binswanger reposiciona sua perspectiva, focando não mais na espacialidade, mas na constituição transcendental temporal. A escolha é sustentada pela preponderância da consciência interna do tempo (Husserl) e pela concepção de temporalidade como regulação primária da unidade das estruturas existenciais (Heidegger).
A Falha na Apresentação Biográfica e o Estilo Telegráfico
A Alteração da Intersubjetividade
Diferentemente da melancolia, que possui a culpa e a perda como temas fixos, na mania não há predomínio de temas. Binswanger foca no estilo de intersubjetividade do maníaco.
A articulação temporal intencional (retenção, protensão e apresentação) propicia a construção de uma biografia ancorada no mundo de vivências intersubjetivas. Na mania, ocorre uma aguda alteração que desconecta o indivíduo de sua trama biográfica.
• Falha na Apresentação Biográfica: O maníaco vive em presenças isoladas, sem ligações habituais ou desenvolvimento biográfico. Não há possibilidade de ordenar estas presenças em um continuum da biografia interna.
• Falha da Retenção e Protensão: Tanto a retenção (passado) quanto a protensão (futuro) são falhas.
• Pura Presença: No sujeito sadio, as apresentações habituais (integradas biograficamente) prevalecem sobre as presenças atuais. No maníaco, as apresentações biográficas são totalmente recuadas em favor das presenças momentâneas ou atuais (presentificação).
Essa presentificação denuncia um desaparecimento da articulação temporal intencional durante a crise. As manifestações maníacas emergem de uma pura presença fora de qualquer contexto biográfico.
A Linguagem e o Campo Vivencial Alargado
Binswanger analisou o estilo particular de fala do maníaco:
• Estilo Telegráfico: Diminuição da utilização de verbos e supremacia de nomes ou substantivos.
• Associações Sonoras: As palavras não são usadas por seus significados, mas por seus sons (rimas, trocadilhos).
No que tange à estrutura fenomenológica da mania, a velocidade dos processos psíquicos e as dimensões do campo vivencial são cruciais.
• Campo Vivencial Alargado: O maníaco toma conta de todo o espaço, interessa-se por tudo, foge de um tema para outro, e faz associações pulando elos da cadeia. Esse campo vivencial é superinclusivo.
A Estrutura da Mania nas Dimensões Vivenciais (Fuchs)
Corporeidade e Espacialidade: Expansão e Leveza
A psicopatologia atual, seguindo a tradição, descreve a mania como a antítese da depressão, onde o peso depressivo é substituído por leveza, desinibição e aceleração. Fuchs descreve as alterações nessas dimensões:
• Corporeidade: O corpo vivido é caracterizado por uma expansão centrífuga, devido ao aumento da movimentação vital e da conação, acompanhado por um senso geral de poder e apropriação. O corpo perde toda a resistência que normalmente impede o agir imediato. Os maníacos desconsideram as necessidades do corpo (e.g., ignoram a necessidade de dormir).
• Espacialidade: O espaço vivido do paciente é estendido e repleto de possibilidades atraentes e promissoras. É um mundo otimista, bem iluminado e com poucos obstáculos.
Temporalidade e Dessincronização
• Dessincronização: Fuchs propõe que tanto a mania quanto a depressão se caracterizam por um processo de dessincronização.
• Euforia Superficial: A mania não é um estado de felicidade profunda, mas sim de euforia superficial, com sentimentos de voar ou flutuar.
Intersubjetividade: Impermanência e Superficialidade
A inibição da profundidade temporal afeta diretamente a qualidade das relações:
• Padrões de Intersubjetividade: Há uma impermanência que impede uma conexão autêntica com o outro.
• Atenção Dispersa: Os pacientes estão agitados, com a atenção dispersa, sem interesse específico pelos outros.
• Conexão Afetiva: Embora o maníaco se aproxime do outro, ele logo perde o interesse, pois o outro não estabelece uma conexão afetiva profunda. A euforia do paciente, embora pareça afeto, permanece como um estado fixo de alegria vazia.
Conclusão Estrutural
A concomitância dessas perturbações na mania determina uma aguda e profunda alteração da vivência de sua própria subjetividade, promovendo uma desarmonia na constituição do mundo pelo doente e pelo mundo circundante. O estilo de vida maníaco, com sua expansividade e o turbilhão (der Wirbel), não é uma deformação da ética, mas sim a consequência dessa acentuada desconfiguração dos aspectos formais da consciência.




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