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Resenha Fenô - Neon Genesis Evangelion: A Angústia da Consciência e o Peso da Existência

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Neon Genesis Evangelion, de Hideaki Anno, é uma obra que transcende seu gênero, oferecendo uma profunda meditação sobre a condição humana. Para além da ação com robôs gigantes e criaturas monstruosas, o anime mergulha nos recantos mais sombrios da psicologia humana, abordando temas de trauma, isolamento e a busca por significado. Ao fazê-lo, a série se alinha de forma notável com duas correntes filosóficas centrais do século XX: o existencialismo e a fenomenologia. Longe de ser apenas um drama de ficção científica, Evangelion se revela um estudo de caso fenomenológico-existencial, onde o mundo subjetivo dos personagens se torna o foco central da narrativa. A angústia, o livre-arbítrio e a complexidade da consciência individual são explorados não como meros conceitos, mas como a própria essência da experiência.


O existencialismo, em sua essência, postula que "a existência precede a essência", um conceito de Jean-Paul Sartre. Isso significa que o ser humano não nasce com um propósito ou natureza predefinida. Em vez disso, cada indivíduo é lançado ao mundo e, através de suas escolhas e ações, cria sua própria essência. Para Sartre, essa liberdade absoluta gera uma profunda angústia, pois o indivíduo é "condenado a ser livre". O universo é, em sua visão, absurdo e sem um sentido inerente, e a responsabilidade de forjar significado recai inteiramente sobre nós. Essa perspectiva ressoa em cada um dos protagonistas de Evangelion. Shinji Ikari, o protagonista relutante, é a personificação da angústia existencial. Sua indecisão, seu desejo de fugir da responsabilidade e sua dificuldade em se conectar com os outros são manifestações diretas do peso que a liberdade impõe. Ele anseia por uma essência, por um propósito que o alivie da necessidade de escolher, mas é forçado a confrontar essa liberdade repetidamente, seja ao entrar no Eva, seja ao decidir o destino da humanidade.


A série também explora o conceito sartriano de má-fé (mauvaise foi). A má-fé é a tentativa de fugir da liberdade e da responsabilidade, enganando a si mesmo sobre quem se é. Shinji age de má-fé quando tenta convencer a si mesmo de que só está pilotando o Eva porque "é forçado" ou porque seu pai Gendo "o mandou", negando sua própria agência. Da mesma forma, a persona de superioridade de Asuka, sua necessidade de provar seu valor, é uma forma de má-fé para mascarar suas inseguranças. Ela se define por sua habilidade como piloto, evitando a confrontação com seu verdadeiro eu. O mundo sem sentido, habitado por Anjos que atacam sem explicação, intensifica a busca por um propósito e torna a fuga para a má-fé uma tentação constante. A vida em um mundo "absurdo" força os personagens a criarem seus próprios valores e a lidarem com a total responsabilidade de suas ações.


A fenomenologia, por outro lado, se concentra na estrutura da experiência e da consciência. Em vez de buscar uma realidade objetiva e externa, ela examina o "fenômeno", ou seja, o modo como as coisas se manifestam para a consciência. Filósofos como Edmund Husserl e Martin Heidegger argumentaram que nossa realidade é o que vivenciamos. O mundo não é um objeto passivo a ser observado, mas uma esfera de "ser-no-mundo", de interações e significados que são subjetivamente construídos. É aqui que Evangelion se torna particularmente fascinante. O Campo A.T. (Absolute Terror Field), a barreira que os Anjos e os Evas possuem, é uma metáfora brilhante e concreta para essa ideia. O Campo A.T. é a barreira do eu, o isolamento inerente a cada consciência. Ele impede a penetração do outro e simboliza a separação fenomenológica entre os indivíduos. A luta contra os Anjos não é apenas uma batalha física, mas uma tentativa de superar essa barreira, de alcançar uma compreensão ou comunhão com algo que é, por definição, totalmente "outro".


A experiência de pilotar o Evangelion é, em si, um ato fenomenológico. A Sincronia entre o piloto e a unidade não é uma simples conexão tecnológica; é uma fusão de consciência. O piloto experimenta o mundo através do Eva, sente suas dores, compartilha suas experiências. A dor física e emocional do robô se torna a dor do piloto, borrando a linha entre sujeito e objeto. O episódio em que Shinji se funde com o Eva-01 e vivencia sua própria consciência, revendo suas memórias e traumas, é um exemplo clássico da fenomenologia em ação. A narrativa deixa de ser sobre eventos externos para se tornar uma viagem ao interior da experiência subjetiva do personagem. É um mergulho no "fluxo de consciência" de Shinji, mostrando ao espectador não o que ele pensa, mas como ele pensa, como ele sente e como seu mundo se manifesta para ele.


A Angústia da Incomunicação: O Papel dos Personagens Secundários e o Complexo de Ouriço

O dilema da comunicação e da solidão em Evangelion é um problema existencial central, abordado através de uma lente fenomenológica. Cada personagem principal, Shinji, Asuka e Rei, está preso em sua própria "bolha" de consciência (seu Campo A.T. pessoal), incapaz de realmente entender o outro. A dor que sentem não é apenas a solidão, mas a dor de ser incompreendido, de ter seu próprio mundo interior inalcançável para os demais. Aqui entra o conceito sartriano do olhar do outro. A cada interação, os personagens são confrontados com a visão que o outro tem deles, o que os objetifica e os torna conscientes de si mesmos de uma maneira que eles não gostam. Asuka, que se define pela sua força, desmorona quando o olhar de Shinji a vê em um estado de vulnerabilidade, quebrando sua fachada. Shinji, por sua vez, evita o olhar de todos para fugir do julgamento e da necessidade de se definir perante o outro. Essa complexa dança de olhares é o cerne do conflito e da angústia da série.


O Complexo de Ouriço, uma metáfora psicológica frequentemente associada a Arthur Schopenhauer, é a perfeita ilustração do conflito de Shinji. O conceito descreve a situação de ouriços que, em um dia frio, precisam se aproximar para se aquecer, mas cujos espinhos os impedem de chegar muito perto sem se machucar. Da mesma forma, os personagens de Evangelion anseiam por intimidade e proximidade para escapar da solidão, mas suas defesas psicológicas (seus "espinhos") causam dor mútua. Shinji, em particular, vive este dilema de forma intensa. Ele busca desesperadamente a aprovação e o afeto de seu pai e de seus colegas, mas seu trauma de abandono o leva a construir uma parede. Ele tem medo de ser rejeitado se se abrir, e, ao mesmo tempo, suas tentativas de se aproximar são frequentemente desajeitadas, resultando em feridas emocionais para si mesmo e para os outros, especialmente Asuka. A relação entre Shinji e Asuka é o exemplo mais explícito do complexo de ouriço: eles são forçados a viver e a lutar juntos, mas sua profunda vulnerabilidade e falta de maturidade os levam a se ferir repetidamente com palavras e ações, mantendo-os em um estado de dolorosa separação.


Rei Ayanami, por sua vez, representa um caso fenomenológico único. Inicialmente, ela parece ser um ser sem consciência, uma tela em branco ou uma "essência" sem existência, o que subverte a ideia existencialista. Sua quietude e falta de emoção mascaram a ausência de um eu predefinido. A jornada de Rei não é sobre aceitar a liberdade, como a de Shinji, mas sobre construir um eu a partir do nada. A cada interação com Shinji, ela absorve experiências e sentimentos, e sua consciência começa a se manifestar. Seu sorriso no episódio 6 é um momento-chave, um vislumbre da formação de uma individualidade. Ela é a prova de que a consciência e a essência podem ser criadas através da interação com o mundo.


A Relação Existencialista entre Pai e Filho: Gendo e Shinji

A figura de Gendo Ikari é a manifestação da angústia existencial levada ao extremo. Sua determinação em seguir o Projeto de Instrumentalidade Humana não é motivada por uma visão grandiosa para a humanidade, mas por uma busca egoísta para escapar de sua própria dor e angústia. Gendo, ao perder a esposa Yui Ikari, se recusa a aceitar a liberdade de seu ser sem ela. Em vez de forjar um novo significado para sua vida, ele se agarra a um projeto monumental que busca a Instrumentalidade para se reunir com a consciência de Yui, a única pessoa que ele jamais amou. Em sua essência, Gendo é um existencialista que falhou em ser autêntico; ele age de má-fé, projetando seu trauma no mundo em vez de confrontá-lo.


Essa má-fé de Gendo é o coração do conflito com Shinji. Gendo não enxerga Shinji como um ser humano com sua própria agência e consciência, mas como uma ferramenta, um objeto que pode ser usado para alcançar seu objetivo final. A relação deles é uma objetificação mútua. Gendo objetifica Shinji ao forçá-lo a pilotar o Eva, e Shinji, por sua vez, reduz seu pai a uma figura de autoridade que ele deve agradar para obter aprovação, em vez de se ver como um agente de suas próprias escolhas. A ausência de uma comunicação autêntica e a incapacidade de Gendo de expressar seu amor tornam a angústia de Shinji ainda mais profunda. A rejeição do afeto e a objetificação do outro são temas existencialistas que ressoam em cada interação entre os dois.


O ápice da série reside na rejeição final do Projeto de Instrumentalidade Humana. Shinji, confrontado com a escolha de se unir a todos em uma existência unificada e sem dor, ou de retornar a um mundo de dor, separação e solidão, mas também de amor e individualidade, escolhe o último. Essa decisão é o ato final da existência autêntica. Ele aceita o ônus de sua liberdade, a inevitabilidade da dor e a responsabilidade de forjar seu próprio significado em um mundo que, por natureza, é indiferente. Ele rejeita não apenas a visão de mundo de seu pai, mas o próprio método de fuga de Gendo. A cena final, onde ele confronta o mundo e declara que está "disposto a estar lá", é o abraço da vida em sua forma mais crua e existencial. Ele escolhe a dor da individualidade em vez do conforto da dissolução, um ato de coragem que reafirma a essência da condição humana.


Concluindo, Neon Genesis Evangelion não é apenas um anime sobre mechas; é um comentário filosófico sobre o que significa ser humano. O existencialismo fornece o arcabouço para entender a angústia de seus personagens e o peso de suas escolhas em um mundo sem propósito preexistente. A fenomenologia, por sua vez, oferece a chave para decifrar a estrutura interna da série, onde a experiência subjetiva e as barreiras da consciência são tão importantes, se não mais, que a trama externa. A obra de Anno nos força a questionar não apenas o mundo dos personagens, mas o nosso próprio, confrontando-nos com o desafio existencial de encontrar sentido na nossa própria solidão e com a nossa própria responsabilidade de criar a nós mesmos. É uma obra que prova que a filosofia pode ser encontrada nas histórias mais inesperadas, e que a angústia da existência é, na verdade, a fundação de nossa própria humanidade.

 
 
 

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