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Oblómov: Símbolo da Aristocracia Decadente ou um Ode à Inação?

Atualizado: 8 de jul.

Oblómov é um romance de 1859 escrito por Ivan Aleksandrovitch Goncharov (1812-1891). Goncharov foi um grande romancista russo do Séc. XIX. Filho de um abastado comerciante de grãos, trabalhou por trinta anos como funcionário público. Publicou seu primeiro romance em 1847, retratando os conflitos entre o romantismo de um jovem e o pragmatismo da elite de São Petersburgo. Entre 1852 e 1855 Goncharov viajou para Inglaterra, África, Japão, e de volta para a Rússia através da Sibéria como secretário do Almirante Ievfimi Putiátin. Suas anotações foram publicadas na forma de crônicas. Passou os últimos anos de sua vida recluso,devido a inúmeras críticas a seus trabalhos. Nunca se casou, e morreu solitário em São Petersburgo no ano de 1891.


O romance Oblómov, por sua vez, foi escrito em torno a um capítulo publicado anteriormente como conto (O capítulo IX da obra). A história narra a vida de Illiá Oblómov, um preguiçoso e indolente aristocrata dono de terras. Seu comportamento deu origem ao termo "oblomovismo" (Обломовщина) para designar a completa inação e prostração. Essa expressão se popularizou a partir do ensaio de Dobrolyubov intitulado "O que é o Oblomovismo?" (1859). Os anos finais do regime de servidão são o pano de fundo e o contexto de publicação da narrativa. No Séc. XIX, enquanto as principais potências européias viviam um momento de industrialização, o Império Russo ainda vivia um sistema feudal. As posses de terras eram contadas em "almas", que refletiam a quantidade de servos à disposição da nobreza. O fim do sistema de servidão (Крепостное право) só foi decretado em 1861, dois anos após a publicação de Oblómov.


A trama se inicia no quarto de Illiá Oblómov, local onde a personagem come e dorme, e onde permanece deitado durante todo o dia. O local é o setting da história por pelo menos metade do livro, e estamos falando de um calhamaço de mais de seiscentas páginas na edição da Companhia das Letras... Nesse quarto ocorre o embate do primeiro capítulo, entre Oblómov e o desobediente e leniente mordomo Zakhar. É também nesse quarto que Oblómov recebe inúmeras visitas de amigos e conhecidos. E a cada uma delas reflete sobre como a vida é um infortúnio para aqueles que precisam fazer muito. Ele conclui: “Ah, meu Deus! Não se pode fugir da vida, ela alcança a gente por todos os lados."


Após a visita do primeiro amigo, que tem por trabalho realizar inúmeras visitas durante o dia, ele pensa:


“Dez lugares num mesmo dia... que infortúnio!”, pensou Oblómov. “E isso é vida?” Sacudiu os ombros com forca. “Onde está a graça? Para que ele se dispersa e estraga a própria vida desse jeito? Claro, não é ruim assistir ao teatro e se apaixonar por essa tal de Lídia... Ela é bonita! Ir ao campo colher flores com ela, passear, isso é bom; mas ir a dez lugares num mesmo dia é uma infelicidade!”, concluiu e virou o corpo, deitando de costas, e alegrou-se por não ter tais desejos e pensamentos vazios, por não se atormentar e, em vez disso, ficar deitado ali, preservando sua dignidade humana e sua calma.

Após a visita do segundo amigo, funcionário público, o livro traz o seguinte relato:


“Esta atolado, querido amigo, atolado até as orelhas”, pensou Oblómov, seguindo-o com os olhos. “Cego, surdo e mudo para todo o resto do mundo. Mas vai ser importante, com o tempo, vai cuidar de negócios importantes e subir de posto... E o que também nós chamamos de carreira! E para isso o homem precisa de tão pouco: inteligência, forca de vontade, sentimento... para que servem? Isso é um luxo! E assim ele vai viver sua vida até o fim e nao vai se perturbar com tantas, com tantas... Enquanto isso, ele trabalha do meio-dia às cinco no gabinete, e das oito ao meio-dia, em casa... Que infortúnio!”
Experimentou um sentimento de alegria serena porque, das nove as três, e das oito às nove, ele podia ficar em seu quarto, no sofa, e orgulhou-se por não ter de fazer relatórios, redigir documentos, e por dispor de vasto espaço para seus sentimentos e para sua imaginação.

E, sem seguida, após a visita do terceiro amigo, jornalista:


“Escrever de noite”, pensou Oblómov. “E quando dorme, entao? Mas deve ganhar uns cinco mil por ano! Já da para pagar o pão! Mas escrever sem parar, consumir o pensamento e a alma com ninharias, mudar de opinião, fazer comércio com a razão e a imaginação, violar a própria natureza, agitar-se, exaltar-se, inflamar-se, nao saber o que é o sossego e ter sempre de ir a algum lugar... E escrever e escrever sem parar, como uma roda, como uma máquina: escrever amanhã, depois de amanhã; vão vir as férias, o verão vai começar, e ele vai ficar sempre escrevendo? Quando vai parar e descansar? Que infortúnio!”

Esses pequenos trechos revelam o modo de agir e pensar de Oblómov, e como ele valoriza não fazer nada e ter tempo para a contemplação e reflexão sem utilidade. Após algumas visitas, inclusive de um amigo que tenta tirar vantagem de sua situação, a personagem Andrei Stolz é introduzida na história. Stolz é a antítese de Oblómov. Alemão, ele representa a burguesia ascendente. Trata-se de um homem de ação e um self-made man, que acumulou grande riqueza através de seu esforço pessoal. Oblómov, por sua vez, enfrentava grandes dificuldades financeiras por ignorar completamente o gerenciamento de suas próprias terras. O embate entre os dois é uma metáfora para as diferenças entre a Europa ocidental capitalista e industrial e a Rússia agrária e feudal. Oblómov representaria então a decadência da aristocracia e Stolz a ascenção da burguesia, como um ideal a ser perseguido.


A trama segue, e somos introduzidos a Olga, por quem Oblómov acaba se apaixonando. Símbolo de transformação e vitalidade, ela clama por mudanças na vida de Oblómov. Porém a inação dele é tão profunda que Olga termina por perceber que amou apenas o "Oblómov do futuro", uma idealização sem lastro na realidade. Os dois se afastam, e Oblómov vai morar com a senhoria Agáfia, com quem acaba tendo um filho. O livro termina com a morte de Oblómov, "serenamente, como se adormecesse para sempre". Stolz então se incumbe pela criação do filho do casal, em um esforço para que a criança "não desperdice sua vida", como o pai. Seu objetivo é que a criança cresça longe de qualquer resquício de "oblomovismo", tendo uma vida útil e ativa. O livro conclui com Stolz explicando o "oblomovismo" a um literato como a "causa" da morte de Oblómov e de sua vida não realizada.


Um panorama das personagens do livro, imaginadas pela IA Gemini, do Google.
Um panorama das personagens do livro, imaginadas pela IA Gemini, do Google.

Embora o livro seja uma sátira da aristocracia feudal russa, podemos reinterpretá-lo também como um ode à inatividade e uma resistência frente aos impulsos do neoliberalismo contemporâneo. Para realizar essa reinterpretação, recorreremos ao diálogo com o filósofo Byung-Chul Han, em específico as obras Psicopolítica, Sociedade do Cansaço e Capitalismo e Impulso de Morte. Nos deteremos então na discussão de algumas ideias de Han, em articulação com a trama de Oblómov:


O "Oblomovismo" como Resistência à "Sociedade do Desempenho" e à "Violência da Positividade": Byung-Chul Han descreve a sociedade atual como uma "sociedade do cansaço" e uma "sociedade de desempenho", onde os indivíduos são impulsionados por uma autoexigência constante e uma "autoexploração voluntária" que os levam ao esgotamento. Ele afirma que o poder contemporâneo opera não por opressão, mas por um "exagero de positividade", esgotando a liberdade ao invés de negá-la. A violência, segundo Han, não provém apenas da negatividade, mas também do "igual".


A indolência e a apatia de Ilia Ilitch Oblómov são o cerne do "oblomovismo": Oblómov "passa seus dias deitado", preferindo a inércia a "enfrentar o mundo". Sua inação, que Stolz chega a chamar de "preguiça até de viver", pode ser interpretada como uma resistência passiva à lógica de hiperatividade. Ele se protege "de tudo o que não consegue administrar". Enquanto a sociedade exige ação, seu médico chega a prescrever-lhe a "suspensão de ocupações mentais e de qualquer outra atividade", um contraponto irônico à "histeria do sujeito de desempenho pós-moderno" que Han critica. A própria vida de Oblómov em Oblomovka (A fazenda de seus pais) era marcada por uma norma "pronta e... transmitida pelo pai... com o mandamento de preservar a integridade e a inviolabilidade dessa norma, como o fogo sagrado de Vesta". Essa permanência é diametralmente oposta à busca incessante por "crescimento" e "desempenho" promovida por Stolz.


"Atenção Profunda" vs. "Hiperatenção" e o Tédio como Ninho da Experiência: Han argumenta que a "atenção profunda, contemplativa", essencial para os "desempenhos culturais da humanidade" e para a filosofia, está sendo "deslocada" pela "hiperatenção", que se caracteriza pela "rápida mudança de foco" e uma "baixa tolerância para o tédio". Han cita Walter Benjamin, que vê o "tédio profundo" como um "pássaro onírico, que choca o ovo da experiência". Nietzsche, também citado por Han, alerta que a falta de repouso leva a uma "nova barbárie" e que é necessário "fortalecer em grande medida o elemento contemplativo". Han ainda ressalta que "a perda da capacidade contemplativa... é corresponsável pela histeria e nervosismo da sociedade ativa moderna".


Oblómov é a antítese da hiperatenção. Seu olhar é demorado e sua capacidade de se perder em pensamentos e sonhos é notável. Ele se irrita com a "agitacão" e a "correria" da vida urbana e com as pessoas que "se dispersam e estragam a própria vida desse jeito". O mundo de Oblomovka é descrito por seu "silêncio" e "sonolência", onde o tempo era contado por festas e estações, e não por meses ou dias, com medo de que o dia seguinte não fosse igual ao anterior. A "vita contemplativa" de Oblómov é visível em sua tendência a mergulhar em devaneios e a rejeitar a superficialidade da vida social: ele acha "maçante, que falem de tudo". O tédio é parte integrante de sua existência, permitindo-lhe a "contemplação artística" das circunstâncias e o desenvolvimento de uma "filosofia" própria.


A "Perda da Alteridade" e o "Inferno do Idêntico" nas Relações: Han observa que a sociedade contemporânea sofre com o "desaparecimento da alteridade" e da estranheza, levando a um "inferno do idêntico" onde as diferenças são neutralizadas. Ele argumenta que "em nome da liberdade eliminamos os outros, sua negatividade".


A tentativa de Olga de "transformar" Oblómov, de "indicar um objetivo para ele" e "obrigá-lo a gostar de" atividades, pode ser vista como uma manifestação dessa "violência da positividade" e da eliminação da alteridade. Ela amava "um Oblómov do futuro!", um Oblómov moldado aos ideais de atividade e produtividade dela e de Stolz, e não o Oblómov real. A frustração de Olga se revela em sua constatação: "eu amava em você aquilo que eu queria que existisse em você, aquilo que Stolz me mostrou, aquilo que eu e ele inventamos". Oblómov, por sua vez, sentiu-se como "um indigente a quem reprovam por sua nudez", aceitando a crítica de que era "mesquinho, patético, vil". A eventual aceitação de Oblómov por Agafia Matviéievna, que o acolhe em sua domesticidade e não busca transformá-lo, representa a aceitação do "idêntico", sem a fricção da alteridade que Olga, e por extensão Stolz, buscavam.


Capitalismo e Impulso de Morte - A Destruição em Nome do Crescimento: Han argumenta que o que chamamos de crescimento hoje é uma "proliferação cancerígena e sem rumo", um "delírio de produção e de crescimento que se parece com um delírio de morte". Ele conecta o capitalismo a um "impulso de morte" freudiano, onde a produção se assemelha à destruição e a "autoalienação da humanidade" pode levar ao "aniquilamento como um gozo estético". O "hipercapitalismo atual" visa à "exploração total do ser humano", transformando sua vida em valor comercial.


A figura de Stolz, o empreendedor dinâmico que se ocupa "com os próprios negócios e, de fato, tinha adquirido uma casa e ganhado dinheiro", encarna a ética capitalista do progresso e da produtividade. Ele representa a introdução das "relações capitalistas numa sociedade com arraigadas tradições agrárias". A aversão de Oblómov à ideia de que o crescimento possa ser destrutivo é percebida em sua relutância em se envolver com as finanças de sua propriedade e sua eventual exploração por Ivan Matviéievitch e Tarantiev, que buscam lucrar com sua inação. A "história do esgotamento" de Bartleby, que Han também aborda, encontra um paralelo no "desperdício de vida" de Oblómov, que Stolz descreve como "morreu, uma vida desperdiçada", sendo o "oblomovismo" a "causa".


A Inação como Rejeição da Sociedade do Desempenho e da Autoexploração: Byung-Chul Han descreve a transição da "sociedade disciplinar" para a "sociedade de desempenho", onde os indivíduos não são mais "sujeitos da obediência", mas "sujeitos de desempenho e produção" e "empresários de si mesmos". Essa nova forma de poder não é repressiva, mas "sedutora, ou seja, fascinante", levando à "autoexploração voluntária" e à "luta interior consigo mesmo". Aqueles que fracassam, "culpam a si mesmos, envergonhados". Han afirma que a "depressão é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade" e que o "homem depressivo é aquele animal laborans que explora a si mesmo", tornando-se "agressor e vítima ao mesmo tempo".


Em resumo, cabe sempre lembrar, como já dissemos anteriormente em outros posts, que a vida não é útil:



 
 
 

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