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Daseinsanalyse: Doença como restrição de possibilidades?


É bastante conhecida, entre daseinsanalistas, a sentença de Heidegger nos Seminários de Zollikon: "Toda doença é uma perda de liberdade, uma restrição das possibilidades vitais" (Heidegger, 2021, p. 641). E até hoje essa frase marcante é absolutizada e repetida como um mantra, como se ela desse conta de toda sorte de doenças e transtornos aos quais podemos ser acometidos. Acontece que aí as coisas se misturam... Heidegger tenta trazer uma definição filosófica (ontológica) para um fenômeno ôntico. Mas será mesmo que essa definição se aplica a tudo aquilo que nomeamos como doença?


Com Georges Canguilhem, no texto O Normal e o Patológico, aprendemos que a saúde não pode ser definida pela simples ausência da doença. E, nesse sentido, a própria noção de doença pode variar conforme a situação. Temos uma definição estática, onde a etiologia da doença é identificada em uma alteração qualitativa dos tecidos e órgãos. Temos uma definição dinâmica, onde há uma alteração quantitativa nas taxas metabólicas, hormonais, etc. em comparação com um padrão de normalidade que pode ser do indivíduo (como ele costuma estar) ou com a população (definida estatisticamente). Há também a definição mais moderna, adotada pela OMS, de um estado de bem-estar biopsicossocial.


Com os transtornos mentais as coisas ficam ainda mais complicadas, pois não temos uma etiologia definida como no caso das doenças. O que temos são síndromes, ou seja, conjuntos de sintomas que apontam para uma alteração em relação a um quadro considerado "normal". Se considerarmos os critérios do DSM-V é possível que a maior parte da população não se adeque a essa suposta normalidade. Mas isso é tema para outro texto. O que queremos discutir aqui é a possibilidade de adoção da definição exposta por Heidegger.


Se considerarmos uma gripe ou resfriado que nos deixa de cama, a definição parece correta. Somos impedidos de realizar nossas atividades rotineiras, sentimo-nos cansados e sem energia e não conseguimos sair da cama. Há uma restrição de nossa liberdade e do nosso campo de possibilidades. No entanto, se aplicamos essa definição a outras situações, que não são consideradas doenças, começamos a complicar a questão. Se pensarmos na velhice, há igualmente uma restrição da mobilidade, da visão, e, em alguns casos, da memória. Seria então a velhice uma doença, na definição de Heidegger? E por quê não seria considerada uma doença para o senso comum? Trata-se de um processo natural, pelo qual todos aqueles que atingirem idade avançada precisarão passar.


Quando aplicamos a definição a quadros psicopatológicos tudo fica ainda mais difícil. Em um caso de esquizofrenia, com presença de alucinações auditivas, visuais e delírios, há uma restrição de possibilidades quanto à realização de atividades rotineiras, mas há também um acréscimo de possibilidades que não estavam antes disponíveis: os chamados sintomas positivos (delírios e alucinações), além da possibilidade de comportamentos novos e situações específicas, como afastamento do trabalho e das atividades de rotina, deixando mais tempo disponível para outros afazeres. Se olhamos sem julgamentos, então para que lado penderia a balança da liberdade? Trata-se de uma matemática difícil de ser estabelecida... Quais seriam os pesos a serem aplicados em cada um dos polos? Ainda assim falamos de um tipo de adoecimento.


Necessitamos então entender de que liberdade e de que possibilidades Heidegger está falando quando lança mão da sentença. Necessitamos voltar algumas páginas no texto, para trazer uma definição diferente e talvez um pouco mais completa:


"Nós fazemos psicologia, sociologia, psicoterapia a fim de ajudar o ser humano, para que o ser humano conquiste a meta da adequação e da liberdade no sentido mais amplo possível. É isso que está em questão para médicos e sociólogos em conjunto, porque todas as perturbações sociológicas e todas as patológicas do ser humano particular são perturbações da adaptação e da liberdade." (Heidegger, 2021, pp. 638-639)


Aqui entra em jogo uma nova noção: adaptação. Mas adaptação ao quê ou a quem? E como a liberdade poderia relacionar-se à adequação? Se recorremos a Kierkegaard, no Desespero Humano/Doença para a morte, começamos a iluminar um caminho de entendimento da questão.


Kierkegaard define o eu como uma síntese de finito e infinito, de temporal e eterno, de possibilidade e necessidade. Então nos remetemos a uma definição ôntica de liberdade, que não pode ser pensada fora do campo das contingências e das necessidades. A adaptação pode ser entendida como uma articulação ou síntese entre os polos eu e mundo. Por um lado, é possível perder-se de si mesmo. Por outro, é possível fechar-se em si mesmo e perder o contato com o mundo. A articulação entre liberdade e adaptação precisa se dar nessa corda bamba, nessa linha tênue entre liberdade e necessidade, da qual emerge a medida de toda e qualquer possibilidade ôntica. Tendo feito esse caminho e esclarecido como podemos entender liberdade e adaptação, podemos então nos remeter ao parágrafo completo em que aparece a sentença inicial:


"Toda adaptação só é possível e só tem um sentido com base no ser-com. No querer ajudar médico é preciso atentar para o fato de que o que está em questão é sempre o existir e não o funcionamento de algo. Caso só se tenha em vista esse funcionamento, não se ajuda de maneira alguma ao Dasein. Isso faz parte da meta. O ser humano é essencialmente carente de ajuda, porque ele sempre corre o perigo de se perder, de não conseguir se haver com si mesmo. Esse perigo está em conexão com a liberdade do ser humano. Toda a questão do poder ser doente está em conexão com a imperfeição de sua essência. Toda doença é uma perda de liberdade, uma restrição das possibilidades vitais." (Heidegger, 2021, p. 641)


Somente tendo em mente o caráter de ser-com é possível compreender a sentença, pois então a liberdade não se confunde com a vontade. A liberdade é situada na articulação entre eu e mundo, em uma medida existencial cuja perda resulta em adoecimento. E o adoecimento mais comum dessa perda é justamente o que Kierkegaard nomeia como desespero.


Quando, na página 639, Heidegger (2021) se remete ao caso Regula Zürcher, de Medard Boss, como um exemplo do adoecimento psíquico com resultados somáticos, ele nos indica um exemplo da perda de liberdade e da adaptação. Essa perda de liberdade e adaptação pode ser pensada também como uma perda do si mesmo compreendido como síntese, e, portanto, a perda pode ser entendida como desespero. Dessa forma, as noções de doença em Heidegger e Kierkegaard parecem se aproximar.


O caso em questão é bastante emblemático do tipo de confusão que pode resultar de uma interpretação absolutizada e reificada da sentença inicial "Toda doença é uma perda de liberdade, uma restrição das possibilidades vitais" (Heidegger, 2021, p. 641). Regula tem alucinações auditivas que ordenam que ela esfaqueie e assassine seu próprio bebê. Ao pensarmos em restrição de possibilidades de forma irrestrita, a própria impossibilidade do assassinato (já que ela decide não obedecer às vozes) poderia ser compreendida como uma forma de adoecimento. Ninguém em sã consciência poderia então concordar com essa interpretação da sentença. É justamente o elemento de adaptação que garante uma interpretação correta, de que esse não é um comportamento desejado.


O objetivo desse pequeno ensaio é problematizar uma interpretação rasa da sentença inicial, e propor um entendimento mais aprofundado, que se afaste das armadilhas sinalizadas aqui. Espero ter alcançado esse objetivo. Deixe seus comentários abaixo, para que possamos dialogar e aprofundar as discussões!


Referências:

Heidegger, M. (2021) Seminários de Zollikon. Rio de Janeiro: Editora Via Verita.

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