Suicídio, ou Suicídios?
- Victor Portavales Silva
- 8 de dez. de 2022
- 7 min de leitura
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O título desse texto exprime uma inquietação... Em minha tese de doutorado, há um trecho do texto que recebe por título: “Que é isso, o suicídio?” Trata-se de um título irônico, por óbvio. A ironia, um recurso muito explorado por Kierkegaard, é então combinada ao modo de pensar de Heidegger. Em textos como “Que é isso a Filosofia?”, “O que é pensamento?” e “O que é metafísica”, o filósofo alemão questiona o estatuto da própria pergunta. Segundo ele, o termo “que” (do latim quid) denota uma ideia de quididade. Ou seja, de essência ou substância. Desse modo, ao colocar a pergunta “O que é...?” já nos posicionamos de antemão, assumindo que aquilo pelo que se pergunta já possui uma identidade em si mesma.
Em relação ao suicídio, isso é um grande e grave problema. Todo agrupamento acaba tornando homogênea uma multiplicidade heterogênea, de modo que as palavras podem ter um efeito cerceador. Quando falamos em “depressão”, por exemplo, temos a ilusão de que só existe um modo do “estar deprimido”. E isso não é verdade... Não há uma única depressão, mas muitas e diversas depressões. Atentar para isso é um exercício cotidiano muito necessário a quem pratica a Psicologia, e, sobretudo, a Psicologia clínica.
Assim como não há uma única depressão, não há um único suicídio. Mas no caso do suicídio o problema talvez seja ainda maior... Suicídio, do latim suicidium, articulando o prefixo sui- (si-mesmo) ao radical -cidium, derivado do verbo caedere, que significa matar ou assassinar. Pela etimologia, parece algo de simples definição e identificação: suicida é aquele que, por sua própria vontade, mata a si mesmo. Ledo engano...
O problema já consiste no adendo “por sua própria vontade”. Afinal, quem está em condições de decidir pela vida ou morte? Qual é a régua ou balança capaz de medir se uma pessoa está “em pleno exercício de sua capacidade racional”? E mais: O suicídio, para a Psiquiatria, é considerado um ato de desrazão. Ora, se a própria Psiquiatria considera que matar a si mesmo é um ato de desrazão, como alguém poderia cometer suicídio, entendo-o como um ato executado “por sua própria vontade”? A perspectiva científica coloca para si mesma uma aporia: como é possível decidir por um ato que já é considerado uma manifestação de desrazão?
Não é possível para a ciência pensar de outro modo porque, segundo Heidegger, ela é carente de pensamento. O mais alto exercício intelectual de nossa época é vazio e carente de pensamento. Isso porque o pensamento meditativo foi completamente abandonado em prol do pensamento calculante, que visa controlar e evitar a todo custo os fenômenos considerados indesejados. E o suicídio é um deles. Como não tentar salvar uma vida? A vida é um bem supremo, que necessita ser resguardado a qualquer custo... Mas será mesmo?
A verdade é que lidamos muito mal com a morte e, consequentemente, com o suicídio. Maria Júlia Kovacs, partindo dessa discussão, chega até a proposta de uma “educação para a morte”, que compreende a necessidade de uma discussão meditativa acerca da morte e do morrer. Para ela, pensar a morte, aproximar-se dela e questioná-la, são formas de ganhar liberdade e serenidade frente à possibilidade existencial mais originária: todos iremos morrer.
E alguns optam por morrer por suas próprias mãos... Mas serão todos eles suicidas, e, como tais, podem ser eles agrupados dentro de uma mesma categoria?
Minha tese de doutorado traz também um relato pessoal de uma tentativa de suicídio. Contudo, hesitei em trazer interpretações sobre o que ocorreu, pois acredito que interpretar o ocorrido é uma tarefa que cabe a cada leitor(a). E, mais que isso, interpretar seria violentar minha própria experiência. Isso porque me coloquei em uma posição controversa, a de analista-analisando. E, sendo assim, ao oferecer uma interpretação eu poderia acabar cerceando a possibilidade de novas interpretações, devido ao meu “lugar de fala”. Hesitei de maneira acertada, pois não me cabe universalizar minha experiência singular. Mas falemos então de outras experiências singulares que poderiam ser abarcadas sob o termo suicídio.
Yukio Mishima foi um grande autor japonês, estudado pelo meu amigo Yan em sua monografia de conclusão do curso de Graduação em Psicologia na UERJ. Yan, ao ler a obra e a vida de Mishima, constatou algo sutil com extrema perspicácia: é possível compreender o ritual japonês de seppuku como suicídio? Mishima matou-se em meio a um contexto político conturbado, como uma forma de protesto contra as mudanças implementadas pelo governo do Japão, e que, segundo ele, abandonava as antigas tradições.
Mishima era um conservador e, como tal, desejava conservar a cultura e a tradição japonesas, assim como o modelo de governo monárquico. Porém, mesmo organizando um grupo de 10.000 pessoas, ele foi incapaz de restaurar o regime que ele mesmo admirava. Em meio ao fracasso e à desonra, em 25 de novembro de 1970, cercado por inimigos, Yukio Mishima tirou sua própria vida: empunhalou sua espada e cravou-a em seu próprio ventre, dando fim à sua existência. Para a Psiquiatria, Mishima talvez estivesse deprimido, e teria cometido o ato em meio a um momento de desrazão. Não parece ser o caso, mas essa é uma interpretação plausível e factível para a ciência psiquiátrica e mesmo a psicológica. Mas verossimilhança não é sinônimo de veracidade e, assim, não é possível chegar a uma verdade última acerca das motivações de Mishima.
Um exemplo extremo, e que não costuma ser considerado suicídio nos manuais de Psiquiatria, é o dos atos considerados como terrorismo. Os membros da Al Qaeda que lançaram aviões nas torres gêmeas e marcaram minha infância, em 11 de setembro de 2001, mataram a si mesmos. Teria sido depressão? Teria sido um ato de desrazão? Parece-me que, em meio à modulação regional do horizonte hermenêutico, marcada pelo fundamentalismo islâmico, suas próprias mortes eram necessárias para eles. E, mais que isso, ofereciam salvação, redenção e a busca por um ideal coletivo. Eles mataram a si mesmos, mas também milhares de pessoas. Poderiam ser considerados suicidas e homicidas, mas costumam ser chamados apenas de terroristas. O que está em jogo é que suas próprias mortes não representam absolutamente nada frente ao golpe narcísico que foram capazes de desferir no orgulho estadunidense. Eles foram apenas alguns dentre tantos árabes que morrem todos os dias. Mas suas mortes almejavam a construção de um ideal. Esse ideal é bastante questionável, é verdade, mas é preciso compreendê-lo para compreender suas mortes.
Parte do islamismo enxerga nos EUA um inimigo religioso capaz de ameaçar a existência de povos e tradições instaladas no Oriente Médio. Dessa forma, um dos grandes objetivos dos chamados terroristas islâmicos é exterminar da face da terra o imperialismo e o colonialismo americanos. Os métodos são bastante problemáticos, mas podem ser contrapostos à violência impetrada pelo país que visam combater. Logo após o 11 de setembro de 2001 os EUA invadiram o Afeganistão, e posteriormente o Iraque. Mais recentemente, a Síria. Os soldados americanos, a mando de seu governo, dizimaram diversos grupos populacionais do Oriente Médio. Ainda assim, raramente foram chamados daquilo que são: homicidas. De modo que, os árabes que matam a si mesmos e diversos outros não são nomeados como suicidas ou homicidas, mas como terroristas. Já aqueles que adentram um país com o objetivo de dominá-lo, sob a desculpa de libertá-lo, e matam diversas pessoas, são chamados de heróis, e não de homicidas. Pois na lógica dos EUA há o direito de obedecer, assim como há o direito de matar. Mas divago... Voltemos ao que interessa ao presente texto.
Uma história tibetana parece confluir os dois fenômenos relatados acima, a morte de Mishima e a morte dos chamados terroristas.

Em 1963, frente a uma situação política extremamente conturbada, o monge budista tibetano Thich Quang Duc ateou fogo no próprio corpo. Sua morte foi um ato de protesto contra o colonialismo e o imperialismo que se instalaram no Tibet. Como é de se esperar, os EUA estavam envolvidos, embora não fossem os responsáveis diretos pela efetivação das políticas colonialistas no local. O cristianismo foi empurrado goela abaixo do povo tibetano, violentando suas tradições e sua história. A bandeira budista chegou a ser proibida no Tibet, como uma forma de garantir a hegemonia e o domínio cristãos, completamente descolados da realidade e das crenças religiosas vigentes no Tibet até então. Em resposta, um grupo de monges budistas organizou um protesto...
Os que estavam no local contam que Thich Quang Duc sentou-se no chão e iniciou um ritual de meditação. Logo depois, um de seus colegas atirou litros de gasolina contra seu corpo. A outro, coube acender o palito de fósforos. A imagem foi eternizada pelo fotógrafo Malcolm Browne, a serviço da Associeted Press. Segundo relatos, Thich permaneceu imóvel e impassível até o último momento, cerca de 10 minutos após o início de sua autoimolação. O fogo consumiu seu corpo, e foi o responsável por tirá-lo da posição meditativa de seu ritual. Na poesia de Zack de La Rocha, vocalista do Rage Against the Machine, Thich Quang Duc poderia ser considerado alguém “calmo como uma bomba”.
Então cabe refletir: seria Thich Quang Duc um mero suicida? Estaria ele deprimido e desprovido de sua capacidade de raciocínio? Seus colegas monges poderiam ser classificados como homicidas, ou, ao menos, como cúmplices de seu suicídio? Ora, foram eles quem providenciaram os meios para a morte e iniciaram o fogo... Entretanto, tudo isso parece pequeno perto do ideal que almejavam. Destruindo a si mesmo, Thich Quang Duc violenta também o outro, mas não de forma concreta e direta como os membros da Al Qaeda. Sua forma de terrorismo é subjetiva, e talvez a mais potente. Pois uma ideia não pode ser apagada, e permanece como elemento corrosivo na memória de todos os que conheceram sua história e viram a foto de Malcolm Browne. Os monges poderiam ser considerados terroristas, mas, no Tibet, são conhecidos como heróis. Isso porque o que eles defendiam é o que Victor Jara, artista chileno brutalmente assassinado pelo regime ditatorial de Augusto Pinochet, descreve, em seus versos poéticos, como o “direito de viver em paz”.

Thich Quang Duc, herói tibetano, está eternizado em uma estátua em forma de monumento no Vietnam. A pedra esculpida traz como elementos principais a imagem do fogo, violento por natureza, contraposta ao rosto sereno e impassível de Thich, que medita calmamente. “Calmo como uma bomba” talvez seja a melhor descrição dessa estátua, que eterniza um ato de terrorismo psicológico. Ao cometer suicídio, Thich Quang eternizou sua existência na mente daqueles que buscavam dominá-lo. Haverá maior ato de rebeldia?
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