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Fenomenologia e PBE: O que podemos aprender e ensinar?

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Este post é baseado em minha fala no XII Congresso Latino-Americano de Psicoterapia Existencial.


Hoje não trago nenhuma poesia, nenhuma grande elocubração. Vou falar de algo simples, mas que não deve agradar a todos(as). Falarei sobre o que podemos aprender e o que podemos ensinar às práticas baseadas em evidências. E, para isso, abordarei a diferença entre modelo contextual e modelo médico.


Minha fala nasce de uma inquietação, uma irritação e um descontentamento sobre como a discussão sobre PBE tem se disseminado sobretudo nas redes sociais. Aqui no Brasil as redes sociais foram tomadas de assalto por grupos inescrupulosos que oferecem promessas de prosperidade e segurança para profissionais e estudantes de psicologia, lucrando sobretudo com nossa insegurança. Falando em insegurança, os pesquisadores Bruce Wampold e Zac Imel, no livro The Great Psychotherapy Debate apontam que os fatores específicos, ou seja, os protocolos de intervenção, representam apenas 1% da eficácia clínica, sendo todo o restante resultado dos chamados fatores comuns em psicoterapia. Nossa insegurança vale esses 1%, mas é monetizada em cursos e formações de PBE que são vendidas por milhares de reais.


Esses grupos oferecem o segredo para nos tornarmos mais confiantes e alcançarmos os chamados pacientes high ticket. Termos ingleses utilizados para valorizar ainda mais o discurso mercantil. Eles também se utilizam do cientificismo para oferecer cursos e formações, e obscurecem cada vez mais a diversidade e pluralidade do campo psi. Eles tem se defendido da acusação de serem neoliberais e incorporarem uma ideologia do sujeito de desempenho e da meritocracia barata. Contudo, dificilmente vocês verão os grandes influenciadores da PBE e os congressos deles abordarem o massacre do Complexo do Alemão. Vocês nunca os verão falar sobre o genocídio em Gaza ou sobre a situação de guerra em África.


O discurso sobre sobre PBE parece uma voz uníssona, pretensamente neutra e asséptica. O que quero fazer aqui hoje é ampliar o debate e torná-lo mais diverso. Precisamos nos aproximar dessa discussão, tomar partido e produzir debates sobre o tema. Do contrário, o navio irá passar, e ficaremos à deriva. Já que a saúde pública tem incorporado elementos da PBE e isso pode ameaçar nossa inserção profissional.


Introdução

A discussão sobre as práticas baseadas em evidências (PBE) na psicologia tem se intensificado, sobretudo nas redes sociais, especialmente no que tange à sua relação com o modelo médico e a busca por uma compreensão mais profunda da experiência humana. Embora as PBE tenham um papel crucial na garantia da eficácia e segurança dos tratamentos, a adoção acrítica de um modelo puramente biomédico pode empobrecer a prática psicológica, negligenciando a complexidade do indivíduo e seu contexto.


Ademais, as discussões têm assumido um tom belicoso, de modo que adeptos das PBE acusam psicanalistas, fenomenólogos, Gestalt-terapeutas, entre outros, de aplicar pseudociência. Essa atitude tem uma finalidade econômica e faz parte de uma estratégia de marketing que consiste em desqualificar concorrentes e opositores para adquirir autoridade e oferecer cursos e mentorias de alto custo e larga escala.


A fenomenologia-existencial costumeiramente se posiciona ao largo das pesquisas empíricas e experimentais, julgando que estes métodos não respondem a seus anseios e questionamentos. Com isso, contudo, negligencia também as discussões atuais de seu campo e corre o risco de perder espaço e relevância. Daniel Sousa parece uma figura solitária que propõe um caminho de estudo das PBE no campo da psicologia existencial.


Se Heidegger nos apontou a serenidade como caminho possível de resposta à técnica, então devemos aprender a dizer sim e não às PBE. Um sim enfático nos aprisionaria tanto quanto um não enfático, já que de uma forma ou de outra estaríamos completamente determinados pelos ditames da eficácia clínica. Trata-se então de encontrar um ponto de equilíbrio, uma estrada que possamos trilhar exercendo nossa liberdade.


Como forma de apontar uma estrada e um caminho de pensamento, proponho nesse Congresso divulgar uma discussão pouco conhecida em nosso meio. Trata-se do embate entre o modelo médico e o modelo contextual nas PBE, citados brevemente no primeiro parágrafo deste texto.

 

A Crítica ao Modelo Médico nas Práticas Baseadas em Evidências

O modelo médico, na sua essência, busca a objetividade e a generalização. Ele se baseia na identificação de patologias, na categorização diagnóstica e na aplicação de intervenções padronizadas que comprovadamente funcionam para um determinado problema. No campo da saúde física, essa abordagem é frequentemente eficaz, pois as doenças tendem a ter causas e manifestações mais universalmente compreendidas. No entanto, ao ser transposto para a psicologia, esse modelo enfrenta desafios significativos.


Um dos principais pontos de crítica é o reducionismo. Ao focar exclusivamente em sintomas e categorias diagnósticas, o modelo médico pode fragmentar a experiência humana, desconsiderando a narrativa de vida do indivíduo, suas emoções, seus valores, suas relações e o contexto sociocultural em que está inserido. O paciente é visto como um conjunto de sintomas a serem tratados, e não como um ser humano complexo em sua totalidade. Isso pode levar a uma despersonalização do cuidado, onde a singularidade de cada caso é ofuscada pela busca por protocolos e diretrizes.


Além disso, a ênfase na eficácia estatística em detrimento da efetividade clínica é outra limitação. Estudos randomizados controlados (RCTs), a espinha dorsal das PBE no modelo médico, buscam demonstrar a superioridade de uma intervenção sobre outra em populações homogêneas e em ambientes controlados. No entanto, o que funciona "em média" para um grupo pode não funcionar para um indivíduo específico, cujas variáveis contextuais e idiossincráticas são infinitas. A aplicação rígida desses achados pode levar a uma prática inflexível, onde a adaptação e a sensibilidade ao caso concreto são secundárias à fidelidade ao protocolo.


Essa perspectiva também pode gerar uma dicotomia entre "saber" e "fazer". O conhecimento é produzido em laboratórios e centros de pesquisa, e a prática é a mera aplicação desse conhecimento. Isso subestima a sabedoria clínica do terapeuta, sua capacidade de improvisação, sua intuição e sua experiência acumulada no trabalho com diversos indivíduos. A autonomia do profissional é diminuída, e a relação terapêutica, um fator crucial de mudança em psicologia, pode ser desvalorizada em comparação com a técnica.

 

A Exaltação do Modelo Contextual

Em contrapartida, o modelo contextual na psicologia oferece uma perspectiva mais rica e abrangente. Ele reconhece que a experiência humana é intrinsecamente ligada ao seu contexto. Problemas psicológicos não são meras disfunções internas, mas sim expressões de interações complexas entre o indivíduo, seu ambiente social, cultural, histórico e relacional.

Nesse modelo, a singularidade do indivíduo é valorizada. O foco se desloca da patologia para a pessoa, com suas forças, recursos e desafios. A compreensão do sofrimento não se limita à sua categorização diagnóstica, mas busca desvendar seu significado para o indivíduo, como ele o experimenta e como ele se manifesta em sua vida cotidiana. A terapia se torna um processo colaborativo, onde terapeuta e paciente constroem juntos um caminho de compreensão e mudança, respeitando os valores e objetivos do indivíduo.


O modelo contextual enfatiza a relação terapêutica como um elemento central para a mudança. Não é apenas a técnica aplicada, mas a qualidade do vínculo, a empatia, a autenticidade e a capacidade do terapeuta de estar presente e sintonizado com o paciente que impulsionam o processo. A flexibilidade e a adaptação das intervenções às necessidades específicas de cada caso são consideradas essenciais, e não desvios do protocolo.


Além disso, o modelo contextual reconhece a influência dos fatores sociais e culturais na saúde mental. Ele questiona a universalidade de certas noções de normalidade e patologia, compreendendo que o sofrimento pode ser moldado por injustiças sociais, desigualdades e opressões. A intervenção não se restringe ao consultório, mas pode se estender ao apoio e à promoção de mudanças sistêmicas que impactem o bem-estar dos indivíduos.

 

O Que a Fenomenologia Tem a Aprender e a Contribuir para as Práticas Baseadas em Evidências em Psicologia

A fenomenologia, com sua ênfase na experiência vivida e na subjetividade, tem muito a contribuir para enriquecer as PBE, especialmente quando elas se abrem ao modelo contextual. Ao mesmo tempo, a fenomenologia pode aprender com as PBE a incorporar certo rigor e e na avaliação de suas intervenções e a comunicar seus achados de forma mais acessível.


O Que a Fenomenologia Pode Aprender das PBE:

  • Rigor e Sistematização: As PBE, com sua metodologia de pesquisa rigorosa, podem inspirar a fenomenologia a desenvolver métodos mais sistemáticos para documentar e comunicar os efeitos de suas abordagens. Embora a fenomenologia valorize a singularidade, a sistematização não significa padronização, mas sim a criação de linguagens e arcabouços para articular o que é aprendido na prática.

  • Comunicação e Disseminação: A linguagem da pesquisa empírica é frequentemente mais acessível a um público amplo e a formuladores de políticas. A fenomenologia pode aprender a traduzir seus insights profundos sobre a experiência humana em termos que dialoguem com outros campos do conhecimento e que demonstrem a relevância de sua abordagem.

  • Avaliação de Processo e Resultado: Embora a fenomenologia critique a busca por "curas" ou resultados pré-definidos, ela pode se beneficiar de formas de avaliar o processo terapêutico e os resultados a partir da perspectiva do paciente, utilizando métodos qualitativos robustos que captem a mudança na experiência vivida.

 

O Que a Fenomenologia Pode Contribuir para as PBE:

  • Aprofundamento da Compreensão da Experiência Subjetiva: A fenomenologia oferece ferramentas para explorar o mundo vivido do paciente, suas percepções, emoções, significados e intencionalidades. Ela ensina a ir além dos sintomas e a compreender o fenômeno em sua complexidade, permitindo que o terapeuta se sintonize com a experiência do outro de forma mais autêntica e empática. Isso enriquece a fase de avaliação e a formulação de caso, indo muito além de um checklist diagnóstico.

  • Reconhecimento do Papel da Relação Terapêutica: A fenomenologia, ao destacar a importância do encontro intersubjetivo, reforça a centralidade da relação terapêutica como um fator de mudança. Ela lembra que o terapeuta não é um técnico neutro que aplica um protocolo, mas um ser humano que se envolve em um encontro dialógico com o outro. Isso pode levar as PBE a dar maior ênfase à formação em habilidades relacionais e à qualidade do vínculo na pesquisa de efetividade.

  • Ênfase no Significado e Propósito: Em vez de focar apenas na redução de sintomas, a fenomenologia convida a terapia a explorar o significado do sofrimento na vida do indivíduo e a ajudá-lo a encontrar propósito e direção. Isso pode expandir as métricas de sucesso nas PBE, incluindo desfechos relacionados ao bem-estar subjetivo, à autonomia e à qualidade de vida percebida pelo paciente.

  • Desenvolvimento de Métodos de Pesquisa Qualitativa: A fenomenologia, com sua tradição de pesquisa qualitativa rigorosa (como a pesquisa fenomenológica-hermenêutica), pode contribuir para expandir o repertório metodológico das PBE. Métodos qualitativos são essenciais para capturar a complexidade da experiência humana, a singularidade de cada caso e os processos de mudança que não são facilmente quantificáveis. Eles podem oferecer insights valiosos sobre "como" e "por que" as intervenções funcionam, complementando os dados de eficácia.

  • Crítica à Universalidade e Generalização Exagerada: A fenomenologia, ao enfatizar a singularidade de cada existência, serve como um contraponto necessário à tendência das PBE de generalizar excessivamente achados de pesquisa. Ela lembra que o que funciona para um grupo pode não ser aplicável a todos e que a adaptação cultural e contextual das intervenções é fundamental.

 

Conclusão

A busca por uma psicologia baseada em evidências robustas é um imperativo ético e profissional. No entanto, essa busca não deve levar a uma adoção simplista do modelo médico. Ao invés disso, uma abordagem mais sofisticada das PBE deve abraçar o modelo contextual, reconhecendo a complexidade, a subjetividade e a singularidade da experiência humana. A fenomenologia, com sua profunda compreensão do mundo vivido, oferece uma ponte valiosa entre a pesquisa empírica e a prática clínica, enriquecendo as PBE com uma perspectiva mais humana, ética e eficaz. Integrar esses saberes não significa abandonar a evidência, mas sim expandir a nossa compreensão do que "evidência" significa em um campo tão intrinsicamente humano como a psicologia.


Como podemos, então, construir PBE que sejam verdadeiramente contextuais e fenomenologicamente informadas, garantindo o rigor científico sem perder a profundidade da experiência humana? Agradeço a oportunidade, e abro essa discussão à participação de todos.


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