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A Filosofia da Existência de Kierkegaard e os Fundamentos da Clínica Psicológica

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Introdução

Olá, pessoal! Sejam muito bem-vindos ao nosso estudo aprofundado sobre um dos pensadores mais radicais e influentes da história: Soren Aabye Kierkegaard.


Muitas vezes, quando pensamos em filosofia, imaginamos sistemas grandiosos, lógicas complexas. Mas Kierkegaard, que viveu entre 1813 e 1855, subverteu essa expectativa. Ele não era um filósofo no sentido acadêmico do termo; ele escreveu sobre a vida, sobre como vivemos e, crucialmente, como escolhemos viver.


Seu grande tema foi o indivíduo e a sua existência – o “ser existente”. E essa entidade, puramente subjetiva, está além do alcance da razão, da lógica, dos sistemas filosóficos e das pretensões da psicologia tradicional. No entanto, é justamente nesse pensamento, que deu origem ao existencialismo, que encontramos os fundamentos vitais para uma clínica psicológica profundamente humana.


Nesta aula, vamos mergulhar na trajetória pessoal de Kierkegaard, entender seus conceitos centrais, como Subjetividade e Comunicação Indireta, e, finalmente, construir a ponte entre sua filosofia da existência e a prática da Psicologia Existencial.

Vamos nessa jornada!


1. A Vida e o Contexto de Kierkegaard

Para entender a obra de Kierkegaard, precisamos entender a vida dele. Nascido em Copenhague, sua vida foi moldada por influências intensas, principalmente a de seu pai, um rico comerciante que foi um tirano depressivo e obcecado pela religião.


O pai, que antes havia sido servo e amaldiçoado a Deus numa colina da Jutlândia quando era jovem, exercia uma influência despótica sobre o filho. Essa relação peculiar desenvolveu em Soren uma mente extremamente lógica e uma imaginação soberba, alimentada pelas longas "viagens" imaginárias que o pai descrevia em detalhes minuciosos no seu gabinete.


Essa intensidade paterna resultou em Kierkegaard ser um aluno estranho, solitário e com um complexo de mártir, defendendo-se com sarcasmo.


Mas a grande crise pessoal que se tornaria o motor de sua filosofia foi o seu relacionamento com Regine Olsen.


Em 1840, Kierkegaard, que era então financeiramente independente após a morte do pai, ficou noivo de Regine. No entanto, ele logo percebeu que era incapaz de levar uma vida normal e que sua afeição, embora profunda, era inteiramente espiritual. Apenas dois dias depois de noivar, ele rompeu o compromisso.


Essa agonia da escolha, esse dilema entre a vida normal (ética) e seu chamado superior (religioso, filosófico), transformou a pergunta pessoal "o que devo fazer?" na pergunta universal "como devemos viver?".


Essa tensão entre o pessoal e o universal é o que torna o existencialismo tão influente!


Inclusive, o conflito levou-o a uma série de polêmicas e excentricidades. Para mostrar a Regine o sofrimento que ele sentia, e para se estimular a viver a vida do espírito, ele chegou a instigar a revista satírica Corsair a atacá-lo. Ele se tornou uma figura de escárnio público, mas, para ele, isso era uma forma de alcançar a notoriedade e a execração que achava devidas.



2. Obras e os Modos de Existência

A partir de suas crises existenciais, Kierkegaard desenvolveu seu pensamento. Vamos analisar alguns pilares da sua obra:


2.1. A Crítica ao Sistema e a Verdade Subjetiva

Kierkegaard rechaçava os grandes sistemas totalizantes, como o de Hegel. Ele argumentava que esses sistemas, construídos na racionalidade, descreviam apenas aspectos objetivos do mundo, ignorando que a subjetividade não é racional.


Para Kierkegaard, a existência é o que resta depois de toda análise, estando simplesmente "aí". Viver essa existência exige o pensamento subjetivo, que leva à verdade subjetiva.


"A subjetividade, a interioridade, é a verdade — essa é a minha tese."

A verdade não está apenas no objeto ao qual nos relacionamos (Verdade Objetiva, como na ciência ou história), mas na natureza da nossa relação com ele, na nossa paixão e compromisso interior.


2.2. Os Modos de Existir

Em sua obra Ou-Ou (publicada sob pseudônimos), Kierkegaard descreve que há maneiras fundamentais de viver a vida. Ele usa a dialética (tese, antítese, síntese), mas de uma forma não sistêmica, focando na concretude da existência.


a) O Modo Estético (O Prazer e a Ilusão): Neste modo, o indivíduo vive para o prazer, a diversidade e o descompromisso. Prioriza o imediato e o exterior, esperando tudo de fora. É passivo, contingente, e carece de liberdade. O protótipo é Johannes, o sedutor. Consequência: A reflexão sobre a vida estética leva à falta de significado e, inevitavelmente, ao desespero. O homem estético, ao buscar o prazer eterno e a ilusão de perfeição, se perde na escravidão ditada pelo impessoal.


b) O Modo Ético (O Dever e a Responsabilidade): Aqui, o indivíduo busca o justo, o certo, o bom. Ele assume a responsabilidade por seus atos e busca se transformar em algo melhor, um “eu ideal”. O foco é o mundo interior, mas o risco é o indivíduo perder-se de si mesmo nas regras e solicitações impostas.


c) O Modo Religioso (O Salto da Fé): Este modo é uma síntese dialética, combinando interioridade e exterioridade, certeza e incerteza. O indivíduo prioriza a humildade e a entrega a desígnios que transcendem o controle. Requer a suspensão teleológica do ético, ou seja, suspender os padrões éticos para alcançar um propósito maior (a fé). A fé é o ato subjetivo último, irracional – um “salto” além de toda justificação.


3. A Multidão, a Singularidade e a Angústia

Kierkegaard estava profundamente preocupado com a emergente sociedade de massa do século XIX.


Ele criticou a superficialidade da época, que valorizava a publicidade e a aparência, resultando na perda da seriedade e da individualidade. O indivíduo, perdido no geral, segue o rumo ditado pela moda e pela publicidade, tornando-se incapaz de decidir e justificando-se no exterior.


Pensemos na figura de Antígona, que Kierkegaard tanto admirava. Ela desobedeceu à ordem do rei Créonte para cumprir um dever sagrado, pautando-se em sua verdade singular e assumindo as consequências.


Para Kierkegaard, a multidão é a mentira. A verdade é alcançada na singularidade, onde o indivíduo se torna responsável por sua ação e assina sua autoria. A singularidade exige que o homem não se perca no geral, mas sem abandoná-lo, fortalecendo-se justamente ao não se deixar levar pelas demandas do mundo.


3.1. A Angústia e o Desespero na Existência

As contribuições de Kierkegaard para a Psicologia Existencial se tornam evidentes na sua análise profunda de dois estados centrais da existência: Angústia e Desespero.


a) O Conceito de Angústia: A angústia é investigada na obra O Conceito de Angústia. Ela não é o medo de algo externo, mas sim o sentimento que ocorre frente à possibilidade, caracterizando a situação de liberdade.


Quando nos conscientizamos da nossa completa liberdade – a de podermos escolher qualquer coisa a cada momento e transformar nossas vidas – sentimos esse pavor. A angústia é uma condição da qual o homem jamais poderá escapar, pois viver implica inquietar-se.


A angústia é crucial porque possibilita que se alcance a consciência do eu. A carência de interioridade, pronunciada pela angústia, estimula a reflexão sobre o próprio modo de ser, levando à interioridade e permitindo ao homem emergir em sua singularidade.


b) O Desespero (A Doença Mortal): Em Doença para a Morte Kierkegaard define o desespero como o fracasso em "querer ser o eu que se é realmente".


O desespero é a doença mortal que reside no âmago da existência. Ele está ligado à ambiguidade do indivíduo, que se constitui num jogo de ser e não ser si-mesmo.


O homem desespera porque tenta estagnar-se, seja no finito ou no infinito, no necessário ou no possível, tentando evitar a ambiguidade inerente à existência. O desespero inconsciente ocorre quando o indivíduo se identifica com algo externo (por exemplo, posses ou sucesso), tornando-se joguete do destino.


A única maneira de escapar é pela autocriação por opção consciente, assumindo responsabilidade integral pela própria existência e querendo profunda e sinceramente ser si-mesmo.


4. A Proposta para a Clínica Psicológica

O projeto de Kierkegaard de mobilizar o homem para que ele se desfaça da ilusão e resgate sua singularidade é o cerne da Psicologia Existencial de inspiração kierkegaardiana.


4.1. O Resgate da Singularidade

A tarefa do psicólogo clínico é, portanto, resgatar o homem singular que se perdeu no geral.


Na sociedade moderna, onde se valoriza o efêmero, o passageiro, e a busca incessante pela satisfação imediata, o homem se escraviza às solicitações do mundo, acreditando ter total liberdade. Cabe ao psicólogo alertá-lo para a ameaça de se tornar um "eterno zero" ou "mais uma ovelha no rebanho".


A clínica existencial não busca resolver paradoxos, mas reconhecer que a existência é paradoxal em sua essência, implicando em inquietude, angústia e desespero.


4.2. A Comunicação Indireta

Kierkegaard, como escritor, utilizou pseudônimos e a manipulação do conteúdo (por exemplo, seduzindo o estético) para atingir o leitor e fazê-lo ganhar transparência através do choque.


Na clínica, o psicoterapeuta adota uma comunicação que se dá, na maior parte do tempo, de forma indireta. Isso é essencial: se o clínico se identifica ou impõe seus referenciais, o outro pode seguir esses critérios e depois justificar que não foi ele quem escolheu.


O objetivo da comunicação indireta é desfazer os laços da ilusão do indivíduo. Para isso, o terapeuta utiliza a estratégia da adulteração.


O psicoterapeuta precisa identificar a ilusão do outro, mas, para provocar a reflexão, ele "finge compartilhar dela" (adulteração), introduzindo o elemento dialético. O terapeuta deve estar atento para não se deixar seduzir pela ilusão do outro, mantendo-se neutro na relação.


A ironia e a metáfora são instrumentos dessa comunicação indireta, pois facilitam a mobilização do indivíduo. O terapeuta, ao atentar para a fala do outro, finge escutar, mas na verdade está buscando o movimento da consciência do indivíduo.


É um trabalho de resgate sutil: o terapeuta não oferece respostas objetivas, mas sim reflete as verdades subjetivas do outro, para que ele decida por si mesmo o caminho que, afinal, é o seu próprio.


Conclusão

Vimos que a filosofia da existência de Kierkegaard nos oferece um alicerce sólido para a clínica psicológica. Ao focar na singularidade e na luta contra a impessoalidade da multidão, ele nos ensina que a angústia e o desespero não são falhas a serem eliminadas, mas condições inerentes à liberdade.


Sua vida e obra, cheias de complexidade e sofrimento, provaram que a autocriação pela escolha consciente é a única alternativa ao abismo.


E é isso, pessoal! Espero que esta aula tenha iluminado a profunda relação entre a filosofia existencial de Kierkegaard e os fundamentos da nossa prática clínica. Não se esqueçam de seguir fiéis à sua própria verdade, assim como Antígona, e fazerem o seu próprio salto da fé!


Se você quer saber mais sobre a relação de Kierkegaard com a psicologia fenomenológico-existencial conheça nosso curso Fenô Descomplicada.


Até a próxima!

 
 
 

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