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Morte, Luto e Fenomenologia-existencial



Ontem precisei ministrar uma aula um pouco diferente... A disciplina era Psicologia em Situações de Desastre, e o tema da aula era luto. Tendo estudado um pouco sobre o sentido social da morte e do morrer, decidi começar por essa discussão. Afinal, não é possível pensar em luto sem discutir o significado da morte em nossa sociedade. Então realizei uma enquete com a turma: solicitei que falassem tudo aquilo que vêm à mente quando ouvem a palavra morte. Apareceram as seguintes palavras:



Todas elas se relacionam com os sentidos mais comuns da morte em nosso tempo. Como algo indesejado, doloroso, difícil de superar e que deve ser evitado a todo custo. Essa pequena enquete foi o ponto de partida para as discussões sobre o sentido social da morte e do morrer. Então recorri a Phillipe Ariès, em seu O Homem Diante da Morte, e sua tese sobre a "morte domada" durante a idade média, como meio de contrapor o sentido moderno apresentado pela turma. Para Ariès, a morte era encarada como algo natural na idade média. As mortes ocorriam no seio da família e eram um acontecimento público. Em geral, as pessoas sabiam que a morte estava chegando devido aos sinais de doença, e aguardavam pacientemente seu derradeiro final. Em nosso tempo, em contrapartida, temos uma morte escondida ou envergonhada. Ela costuma ocorrer nos hospitais, em ambiente isolado e asséptico, fora de nosso campo de visão. Nossa tendência natural é esconder a morte, e isso nos leva a uma lida desesperada com esse processo, que é uma das poucas certezas que temos. Sabemos que todos irão morrer, mas pouco pensamos sobre nossa própria morte.


Discutimos também as possíveis definições e critérios acerca da morte. A turma trouxe as seguintes ideias: "A morte é o fim da história da gente, o término da vida, um processo natural da vida, e a morte acontece quando a pessoa é esquecida". Algumas dessas definições entravam em conflito umas com as outras, como o critério para estabelecer o momento da morte. Nesse momento pedi que tentassem definir esses critérios, e chegamos às seguintes elaborações: "Ausência de sinais vitais. Quando as funções vitais encerram (cérebro, coração, pulmões)". Percebi que era hora de discutir a noção de morte biológica, e também a ideia de vida após a morte. É sabido que em outros momentos históricos, bem como em outras culturas, é comum a crença na vida após a morte. Isso não acontece em nossa sociedade, que é completamente permeada pelo poder biomédico, que tenta estabelecer critérios objetivos para a morte. A definição da morte como o momento do esquecimento, trazida por um aluno, lembrou-me da história de João Ternura, de Aníbal Machado. Nesse livro em prosa, Aníbal traz essa definição poética da morte. Ao contar a história de João Ternura ele narra o momento do primeiro amor, e de como ele foi celebrado através de um singelo presente entre os enamorados: uma pedra. Somente os dois, namorado e namorada, sabiam o que a pedra significava, e, ao final do livro, quando ambos já se encontravam mortos, é o neto quem joga a pedra pela janela do sótão, propiciando o esquecimento e a morte definitiva do casal.


Foi durante essa pequena explanação que uma aluna pediu a palavra e trouxe um longo relato sobre a perda de muitos entes queridos, como pai, mãe, marido, tios, etc. Ela revelava uma profunda solidão, mas também uma esperança contumaz. Durante sua fala ela trouxe a seguinte ideia: "Além da morte biológica, temos também a possibilidade de uma morte em vida". Ela se referia à perda da vitalidade que advém de uma vida sem propósito e sem sentido, e que pode ser resultado de um luto. Perguntei se a turma já havia feito a disciplina de "Teorias Existenciais, Humanistas e Fenomenológicas", ao que responderam que sim. Busquei nas minhas referências a discussão sobre ser-para-a-morte em Heidegger. Falei a eles como nosso modo mais comum em lidar com a morte é a impessoalidade, o automatismo e a ignorância. Simplesmente ignoramos a morte. Não costumamos ser versados no que Maria Júlia Kovacs nomeia como uma Educação para a Morte. Simplesmente não estamos preparados para lidar com nossa própria finitude ou a finitude dos mais próximos. Decidi não utilizar a terminologia heideggeriana, afinal o termo decisão antecipatória da morte exposto em Ser e Tempo poderia assustar a turma. Então optei por fazer a discussão sem mencionar a expressão, mas debati sobre o papel da angústia e do confronto com a morte no estabelecimento de um propósito ou sentido para a vida. Para Heidegger, assim como para Kierkegaard, é só nesse confronto que pode emergir um projeto de vida que contenha sentido. A isso, Kierkegaard nomeia seriedade. Heidegger, por sua vez, chama-o propriedade, ou autenticidade.


Seguimos para a exposição sobre luto, e novamente realizei a enquete. Que resultou nas palavras e expressões abaixo:



As palavras revelam dois sentidos principais: o de que o luto é um período marcado por emoções negativas, e de que é um momento a ser superado. Então refletimos em conjunto: Será mesmo possível superar uma perda? A dor e ausência do ente querido continuam mesmo após longo período, mas o que podemos trabalhar são os sofrimentos decorrentes de sentimentos associados à perda, como a culpa, o inconformismo, a impotência, a raiva e a ansiedade. Essas são camadas a mais na perda, que podem ser trabalhadas. No entanto, a ausência da pessoa continua, e essa dificilmente será esquecida.


O DSM, em sua quinta versão (DSM-V), traz a proposição de uma categoria diagnóstica futura, o chamado Luto Complexo Persistente. Abaixo segue a definição proposta, que consta no manual:



Trata-se da tentativa de estabelecer um limite para a dor da perda, com base em um critério de duração. Mas será mesmo possível medir a dor do outro usando esse tipo de régua? Até que ponto essa definição não incorre em uma patologização de experiências comuns em nossa sociedade? Discutimos isso em sala, e muitos outros relatos surgiram. De perdas, de lutos, de mortes de pessoas queridas. A aula parece ter tido um efeito catártico na turma, pois eu nunca havia experimentado tamanha participação até então. Juntos, questionamos a categoria do luto complexo, ou patológico, que consta no livro texto da disciplina.


Discutimos também as similaridades e diferenças em relação ao luto em situações de desastres. Comparamos com mortes por acidentes, mortes por suicídio e outras situações. Uma aluna levantou como questão a invisibilização do luto em situações de aborto, nas quais as mulheres não costumam ser encaradas como mães, ou seja, tem seu estatuto de maternidade negado e acabam por sofrer diversas violências no trato em instituições de saúde bem como fora delas.


A principal questão da turma era "Como ajudar alguém em situação de luto?" e eu não tinha uma resposta definitiva a ser dada. Falei do que deve ser evitado, como frases motivacionais, explicações religiosas, e outras comunicações que podem ser entendidas como violentas. Enfatizei a compreensão e o acolhimento, mas talvez eu tenha ensinado verdadeiramente através de uma comunicação indireta. Enquanto cada pessoa trazia seu relato, eu podia exercitar não só o papel de professor, mas também de profissional em Psicologia, ouvindo atentamente as histórias e enfatizando as formas de enfrentamento trazidas por cada um(a).


Esse pequeno relato tem o singelo objetivo de mostrar como a fenomenologia-existencial pode contribuir para as discussões sobre mortes, lutos e desastres. Nesse fim de semana, e enquanto eu realizava a aula na modalidade online, uma severa chuva castigou o Rio de Janeiro. É possível que cada uma das pessoas que ouviram a aula tenham de colocar os conhecimentos em prática. Contudo, acredito que eu tenha suscitado mas dúvidas do que certezas, e isso não é ruim. A maior contribuição que a fenomenologia-existencial pode dar é justamente a crítica dos sentidos cristalizados e sedimentados historicamente, que nos impedem de ter uma livre-relação com os fenômenos com os quais nos deparamos.


Ministrar a aula e escrever esse texto não foram tarefas fáceis. Nesse momento meu pai encontra-se internado, sedado e entubado, e eu mesmo preciso pôr em prática tudo aquilo que discuti em aula. Mas estarei realmente preparado para essa tarefa? Tenho minhas dúvidas, mas só o tempo poderá revelar qualquer resposta...


Abaixo, recomendo algumas leituras para aqueles(as) que desejarem se aprofundar nas discussões apresentadas.


Referências:

Ariès, Phillipe. (2014) O Homem Diante da Morte. Editora Unesp.

Bertolote, J. M. (2012). O Suicídio e sua Prevenção. Editora UNESP.

Han, B.-C. (2020). Morte e alteridade. Editora Vozes.

Han, B.-C. (2021). Sociedade Paliativa: A dor hoje. Vozes.

Kellehear, A. (2016). Uma história social do morrer (1o ed). Editora UNESP.

Kovács, M. J. (2021). Morte com dignidade. Em K. O. Fukumitsu, Vida, Morte e Luto: Atualidades Brasileiras. Summus Editorial.

Minois, G. (1998). História do Suicídio: A Sociedade Ocidental perante a Morte Voluntária.

Schumacher, B. N. (2009). Confrontos com a morte: A filosofia contemporânea e a questão da morte. Loyola.


 
 
 

1 commentaire


É difícil passar pela morte de um ente querido. Tenho passado por perdas ao longo dos anos e nesse momento acabo de perder minha irmã. Não é fácil, mas a única coisa a fazer é acreditar que a morte é com o nascer, morremos nesta vida para nascer em outra.


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