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Desespero, Angústia e Depressão


O primeiro autor no campo da psicologia a resgatar diretamente a obra de Søren Kierkegaard foi o psiquiatra Ludwig Binswanger. Embora Sigmund Freud pareça ter lido e sido influenciado por Kierkegaard, foi Binswanger quem primeiramente utilizou seu pensamento na clínica. No caso Ellen West, publicado em 1945, ele utiliza a categoria do desespero para se referir à doença da paciente, que seria hoje diagnosticada com uma profunda depressão, além de bulimia e anorexia. Posteriormente, na década de 1950, Rollo May foi o responsável por recuperar e divulgar os escritos de Kierkegaard em terras americanas. May foi particularmente influenciado pelas obras "O Desespero Humano" e "O Conceito de Angústia", que inspiraram sua obra "O Significado de Ansiedade", de 1950. Algumas formas do desespero e da angústia descritas por Kierkegaard se aproximam do que denominamos atualmente como depressão.


Para falar sobre desespero em Kierkegaard, precisamos primeiramente compreender do que se trata esse conceito, pois a definição é bem diferente da que estamos acostumados no senso-comum. Kierkegaard fala do desespero como a doença mortal, que é o título da obra em dinamarquês. Temos uma tradução um pouco mais antiga, indireta, vinda do francês, que tem por título  “O Desespero Humano”, mas na tradução mais recente, feita pelo Jonas Roos, o título original foi mantido, como “A Doença para a Morte”.


Mas o que significa exatamente essa mortalidade do desespero, se não podemos morrer dessa doença? Trata-se justamente do fato de que somente nós mortais é que padecemos desse mal. O desespero é uma doença da consciência, ou da vontade, como fala a profa. Ana Feijoo. Kierkegaard entende o indivíduo como uma síntese de finito e infinito, de possíveis e necessários, de temporal e eterno. Sendo uma síntese, é preciso se equilibrar entre cada um desses pólos. O desespero ocorre quando nos afastamos demais do centro, quando nos aproximamos de um dos pólos em detrimento do outro. É possível se perder na realidade em meio ao fatalismo, acreditando que somos mero resultado das contingências e que nada nos é possível. Mas também é possível se perder na imaginação, acreditando que podemos exercer todas as possibilidades, sem no entanto agir ou executar aquilo que idealizamos.


Essas são algumas formas possíveis de desespero. Kierkegaard descreve inúmeras. A cura para o desespero seria o que ele chama de fé, e aí precisamos compreender o que essa fé significa. No meu entendimento, ela se aproxima de uma entrega plena à existência, aceitando as contingências, possibilidades e responsabilidades que são próprias a cada um de nós. Algo similar ao que Nietzsche chama de amor fati, ou amor ao destino.


Bem, e onde entra a depressão nessa história? O que entendemos atualmente por depressão abarca uma multiplicidade enorme de fenômenos psicopatológicos. Depressão é um termo que eu considero vago e impreciso. Há depressões. E é possível aproximar algumas dessas depressões ao que Kierkegaard nomeou como desespero, assim como também é possível aproximar do que ele chamou de posições psicológicas ou estados psicológicos da liberdade, no livro “O Conceito de Angústia”.


Tanto no “Desespero Humano” quanto no “Conceito de Angústia” Kierkegaard descreve um estado que ele chama de demoníaco, ou ainda de hermético, que remete à noção de hermetismo. A descrição que ele faz é bastante similar a algumas formas de depressão que aparecem na clínica. O hermético é justamente aquele que perde a possibilidade de comunicação. Não só com o mundo, mas também consigo mesmo. E um dos maiores riscos nesse estado é o suicídio. O hermético é aquele que se perde de si mesmo, perde a possibilidade de encontrar aquilo que faz sentido pra si, porque perdeu a capacidade de comunicar-se consigo mesmo. A marca do hermético é o silêncio. A saída é ouvir o que o silêncio tem a dizer, e é preciso entender que o silêncio ocorre não somente pela ausência de fala, mas pode se manifestar também através de um falatório que nada comunica, que é vazio de conteúdo.


Na clínica, é preciso estar atento a esse tipo de manifestação para compreender como manejar esse silêncio e como retomar a possibilidade da comunicação. Toda a vida da pessoa pode estar em jogo quando ela decide se calar. Como nossas ferramentas são a escuta e a fala, precisamos manejar essas ferramentas para que o outro possa retomar sua comunicação e consequentemente a si mesmo.


Há também outras formas de perder-se de si mesmo. Vivemos em um mundo atribulado, cheio de afazeres e distrações. Também é possível perder-se de si em meio à multidão. Aliás isso é o mais comum, e o que costumamos chamar de impropriedade, ou inautenticidade, mas que Kierkegaard chamava de nivelamento, como no texto “A Época Presente”. O nivelamento é a perda de si em meio à massificação, sobretudo promovida pela publicidade e pela propaganda.


Há um trecho que me marcou muito, do “Desespero Humano”, que fala um pouco sobre essa temática, que diz assim:


“Aos olhos do mundo, o perigo está em arriscar, pela simples razão de se poder perder. Evitar os riscos, eis a sabedoria. Contudo, a não arriscar, que espantosa facilidade de perder aquilo que, arriscando, só dificilmente se perderia, por muito que se perdesse, mas de toda a maneira nunca assim, tão facilmente, como se nada fora: a perder o quê? a si próprio. Porque se arrisco e me engano, seja! a vida castigame para me socorrer. Mas se nada arriscar, quem me ajudará? Tanto mais que nada arriscando no sentido mais lato (o que significa tomar consciência do eu) ganho ainda por cima todos os bens deste mundo — e perco o meu eu.”


Isso é o que Kierkegaard chama de desespero do finito, algo muito parecido com a imobilidade de uma depressão ansiosa. A imobilidade, o medo do futuro, tudo isso é alimentado pelo falatório impessoal da multidão. Nos perdemos de nós mesmos quando damos um ouvido irrestrito ao que diz o mundo. A saída é justamente uma retomada de si, um diálogo interior que possibilite encontrar aquilo que efetivamente possa fazer sentido de maneira singular.


Em resumo, nessa articulação entre depressão, desespero e angústia, vemos que é possível perder-se de si em meio ao silêncio ou pelo excesso de burburinho da multidão. Esses são dois modos de perda da comunicação interior que podem resultar em uma depressividade, e o caminho para superação é justamente a retomada do diálogo interior atentando para os sentidos que podem emergir nessa situação.

 
 
 

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