Indicação de Leitura: O Melhor que Podíamos Fazer
- Victor Portavales Silva
- 11 de ago. de 2024
- 4 min de leitura

Para quem aprecia quadrinhos, indico a leitura da publicação O Melhor que Podíamos Fazer, de autoria de Thi Bui, publicado em português em 2017 pela editora Nemo. O livro possui 336 páginas, mas pode ser lido rapidamente, em uma única tarde. A arte gráfica é muito bonita, a história é envolvente, e a narrativa bastante fluida.
Trata-se de uma obra de cunho autobiográfico, contando a história da família de Thi Bui, que deixou o Vietnã na década de 1970 e se estabeleceu nos Estados Unidos. Os dramas pessoais e familiares são intercalados a narrativas históricas para formar uma trama complexa porém delicada.
O título, segundo o prefácio escrito pela própria autora, foi escolhido com bastante dificuldade. Inicialmente foram cogitados outros nomes, mas ao finalizar o trabalho de pesquisa de sua história familiar e pessoal, a escritora se deu conta do que lhe havia ocorrido. O passado, que antes poderia ser considerado um fardo, já não pesava tanto. O tempo adquiriu certa fluidez, antes desconhecida.
Este tipo de epifania também pode ocorrer durante o acompanhamento psicoterápico. É possível para algumas pessoas, no espaço de reflexão demorada do consultório psicológico, notar subitamente uma mudança existencial. Não cabe teorizar sobre isso, mas algumas vezes é possível notar o momento em que ocorre uma mudança abrupta na relação com o tempo e com a existência, um tipo de aceitação plena das dificuldades, amarguras, sofrimentos, tristezas, conquistas, e alegrias. E por isto trago o tema, e o livro, para este blog.
Friedrich Nietzsche já havia discorrido, no final do Séc. XIX, sobre este tipo de experiência através das noções de eterno retorno e amor fati, em obras como A Gaia Ciência (1882), Assim Falava Zaratustra (1883), Além do Bem e do Mal (1886) e Ecce Homo (1888). Uma das primeiras referências ao eterno retorno aparece no aforismo 341 do escrito de 1882, intitulado O Peso mais Pesado:
E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!” – Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!”.Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?” Pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” (Nietzsche, F. A Gaia Ciência, § 341)
Através desta alegoria Nietzsche nos apresenta a questão a ser respondida: Viverias toda a tua vida novamente, por toda eternidade? Como tens lidado com suas próprias escolhas, com teus próprios valores? Trata-se de um peso grande a ser carregado: viver como se toda a eternidade dependesse disso. E, ainda sim, como que num momento sublime, durante um pequeno instante, que seja, é possível concluir que tudo foi e tudo será exatamente o que deve ser:
Há uma coisa, em mim, à qual chamo coragem; e ela, até agora, sempre matou em mim todo desânimo (…) A coragem mata, também, a vertigem ante os abismos; e onde o homem não estaria ante abismos? O próprio ver – não é ver abismos? A coragem é o melhor matador: a coragem mata, ainda, a compaixão. Mas a compaixão é o abismo mais profundo: quando mais fundo olha o homem dentro da vida, tanto mais fundo olha, também, dentro do sofrimento. Mas a coragem é o melhor matador, a coragem que acomete; mata, ainda, a morte, porque diz: “Era isso, a vida? Pois muito bem! Outra vez!” (Nietzsche, F. Assim Falava Zaratustra, § 1)
E assim chegamos à concepção de amor fati, amor ao fado, amor ao destino. Amar a existência como tem sido, e como virá a ser, é a forma mais elevada de amor para Nietzsche:
Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo (…) mas amá-lo… (Nietzsche, F. Ecce Homo, § 10)
O Melhor que Podíamos Fazer parece traduzir para a linguagem literária a experiência de epifania como amor fati, em que é possível aceitar incondicionalmente a própria história como ocorreu, sem que seja necessária qualquer alteração. O mérito de Thi Bui está em transpor este tema, filosófico, para uma linguagem simples, acessível, prazerosa. Esta é uma leitura possível de sua obra.
Mas outros literatos também possuem textos que trabalham esta questão de modo exemplar. Para fechar o post, encerro com um poema de Cecília Meirelles que parece tratar do mesmo tema:
XXVI
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste breve,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos humanos,
Esquecidos…
Enganados…
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor…
(Meirelles, C. Cânticos. 4a Ed. São Paulo: Global. 2015, p. 69)
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