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Cartas a um(a) jovem terapeuta: Uma aula sobre finitude e a tarefa de tornar-se terapeuta



O texto a seguir é a transcrição de uma aula proferida por Yan Sousa de Almeida em uma disciplina eletiva do curso de Graduação em Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), em 9 de janeiro de 2023. Nessa aula, Yan colocou em questão a finitude e tematizou doença e morte. Tudo isso entremeado na tarefa dos alunos e das alunas que se colocavam à sua frente. Todos e todas estavam ali para se tornar psicólogos e psicólogas. Alguns e algumas, para tornarem-se terapeutas. Nesse sentido, considero essa transcrição uma verdadeira "Carta a um(a) jovem terapeuta", e muito melhor que qualquer coisa que o Caligaris já tenha publicado... Mas isso sou eu (Victor) quem está dizendo. Cada um que tire suas próprias conclusões! Como tarefa prévia à aula, Yan recomendou a ler o conto "Sobre Estar Doente", de Virginia Woolf, e assistir o filme "As Horas" (2002). Vocês também podem fazer isso antes ou depois de ler o texto. Mas só se quiserem...


Acho que é essa hora que eu começo a falar mais né?


Então... Acho que seria educado eu reiterar uma boa tarde mais geral para todo mundo: Então, Boa tarde. E feliz ano novo também. O ano novo é um tempo que prova que essa coisa bicho que é a gente é praticamente profissional em fazer história, em criar sentido. A gente vê ponto brilhantes na noite e cria constelações. Não só essas constelações representam imagens, como também vão te dizer se o homi que você pretende se relacionar vai funcionar pra você. E se não funcionou, elas, essas constelações, que são bichos e alguns objetos também, podem te explicar que o seu relacionamento não deu certo porque não tem como você, aturar um taurino, não é bem verdade? O ano novo não é ano nem é novo, porque, deixando o mundo por si mesmo acho que ele não se preocuparia muito com a idade que tem, ou quando faz aniversário. Mas a gente se preocupa com essas coisas, a gente também atribui um significado especial para esse período. A gente chama de virada. Como se o planeta, ou a vida tivesse lados. Mas essa virada pode se tornar o catalizador de crenças e transformações.


Eu gosto desse momento por causa disso. Não porque eu acredite que seja o ano novo que transforme as coisas, eu acho que eu estou muito cínico pra isso, mas porque eu acredito que o acreditar das pessoas pode fazer elas transformarem as coisas. Não num sentido de O Segredo, de força de pensamento. Mas porque eu acho que pra você fazer alguma coisa, primeiro você se imagina fazendo ela... Isso não tem nada a ver com visualização também. Por exemplo: Vocês tão aqui na UERJ, passaram por um exame de vestibular, no processo de se prepararem para esse vestibular, em vários momentos, antes de fazer a prova, vocês, em algum ponto, acreditaram em várias ideias. Vou citar alguns exemplos, nem todos se aplicam, mas alguns podem ressoar. Acreditaram que estudar compensa, acreditaram que fazer faculdade vale a pena, acreditaram em vocês mesmos serem capazes de passar, ou, pelo menos, fazer a prova, acreditaram na profissão institucionalizada do psicólogo, independente da modalidade. E o que fundamenta todas essas crenças são histórias. Muitas dessas histórias, foram contadas para vocês. Muitas dessas histórias, como uma criança muito autossuficiente que se nina ao anoitecer, vocês mesmos se contaram. Outras dessas histórias são tão antigas que ninguém precisa contar para vocês para elas existirem em vocês.


Mas enfim, to aqui falando coisas que só teriam a ver com uma exposição sobre um ensaio da Virginia se vocês me escutassem doentes. Falando nisso, vocês, pessoas comprometidas com o aprendizado acadêmico, que se dispõe a sair da casa, num verão do rio de janeiro, nesse dia aclimatado, pra ter aula na faculdade com pessoas que nem são o professor titular da disciplina, vocês conseguiram ler o texto, conseguiram ver o filme? E mais ainda, conseguiram fazer os dois? E se conseguiram, o que vocês acharam?


*


Quando ficou meio que decidido que durante essa aula de hoje o ensaio da Virginia sobre estar doente seria de alguma forma comentado eu parei para tentar lembrar qual foi o contexto que me fez encontrar com esse texto... Porque eu sei que eu já conhecia a Virginia Woolf, não porque ela é necessariamente uma autora famosa, mas porque ela foi uma pessoa que se matou. A minha pesquisa de monografia foi sobre um escritor japonês que também se matou. Enquanto eu escrevia a minha monografia eu acabei pesquisando um pouco sobre autores que cometeram suicídio, e a Virginia apareceu. Mas até a alguns dias atrás eu não tinha lido nada escrito por ela. E, a primeira coisa que eu tinha lido que foi escrita por ela foi esse ensaio sobre estar doente, mais especificamente o primeiro parágrafo desse ensaio. Não exatamente o primeiro parágrafo, mas a metade do primeiro parágrafo. Eu li esse trecho e parei de ler o ensaio.


Eu não sei se vocês já tiveram essa experiencia: De alguém estar te contando uma história, ou você ler um texto ou ver um filme e só de tocar em um trecho de alguma dessas obras você já consegue, num instante produzir todo o resto por si mesmo. Óbvio que não é por si mesmo, já que esse instante aconteceu na sua relação com a obra, mas ela é como uma centelha que acende e faz despertar algo, nisso que você tende a chamar de você. Às vezes, quando isso acontece, mesmo a minha criação sendo um pouco diferente do restante da obra factual, eu nem preciso ver o resto. E o que me aparece é sempre muito melhor, não porque é melhor, mas porque é meu.


Aahh... Parece que hoje eu to falando muito estranho. Mas pra mim a clínica, assim como textos, histórias, filmes e obras de arte, pode resguardar momentos como esse. Enfim. Ler metade do primeiro parágrafo desse ensaio foi isso para mim. Mas, pra mim isso de não conseguir lembrar porque eu encontrei esse ensaio é meio estranho. Só que, se você, como todo bom aluno de graduação, ler a página do Wikipédia a respeito desse ensaio você vai encontrar o seguinte, e aqui eu cito:


“Embora a obra tenha sido impressa em vários locais durante a vida de Woolf, ela não atraiu a atenção da crítica até que foi republicada em 2002, quando experimentou um ressurgimento de interesse.”

A obra foi publicada em várias formas e momentos porque a Virginia e o marido dela, o Leonard, tinham uma impressora. Não dessas que você provavelmente tem em casa, mas sim, uma que envolvia um maior trabalho braçal, e não wifi ou bluetooth que não conectam. O wifi era mais analógico.


Mas o texto do Wikipédia continua dizendo o seguinte:


“O ensaio foi incluído na lista do Los Angeles Times de melhor poesia de 2002. Tornou-se particularmente popular entre os médicos, estudiosos da história da medicina e acadêmicos que passaram por doenças graves.”

Eu não sei como você premia como poesia um ensaio, mas eu achei esse comentário muito engraçado. Porque esse trecho não diz que os acadêmicos que se interessaram foram necessariamente os que estudam doenças graves, mas os que passaram por doenças graves. O trecho em inglês pode ser um pouco mais ambíguo, mas é interessante de qualquer jeito. Ele se refere a acadêmicos “who have experienced severe illness.”


Eu comento esse trecho do Wikipédia porque, mesmo não conseguindo me lembrar examente como eu me encontrei com esse texto da Virginia, essa descrição muito me contempla. Tirando o fato de não ser médico, as outras coisas podem muito bem se referir a mim. Talvez seja por isso que eu tenha acabado me encontrando com esse texto, ou esse texto tenha me encontrado.


É que eu nasci doente. Já nasci fazendo cirurgia. Depois fiz mais 22. E parece que até hoje isso que tenho não tem cura. AAaahh... É complicado. Como disse, eu to doente. Acho que a expressão, “eu tô” não cabe tanto, acho que seria melhor dizer, eu sou doente. E isso muda algumas coisas.


Em geral, quando eu preparo qualquer tipo de comentário como esse que o meu eu do passado, numa conversa de WhatsApp, se propôs a fazer agora no presente, eu costumo encadear as ideias em uma sequência. Eu vou indo por tangentes que as vezes parecem não ter nada a ver com o assunto aí no final eu meio que aponto que, na verdade, eu tava falando da mesma coisa o tempo todo. Quando isso funciona, o que é bem raro, já que eu não escrevo, leio e penso, tão bem assim, porque pra mim escrever é ler que é pensar, que é escutar que é ver.


A sensação que dá, pra quem vê, escuta, pensa ou lê é de uma espécie de realização. As descrições que me deram são coisas como: Dar uma areada, ou abrir a janela, Tranquilizar. Já me falaram que gostam de me ouvir porque eu tranquilizo. Haha, rio de nervoso. Já me falaram também que é como tocar na flor e ela abrir.


Eu queria estar inventando isso porque é meio vergonhoso escutar e mais vergonhoso ainda falar isso em voz alta aqui para vocês. Mas ultimamente eu acho isso, esse meu movimento, extremamente cansativo, e também inútil. Porque eu não vejo frutos do esforço que é traduzir meus instantes febrilmente doentios em uma sequencia que faça algum sentido para outras pessoas que vivem na saúde. Então, ao invés de fazer isso eu decidi fazer o que todo mundo, ou pelo menos, a maioria das pessoas fazem quando estão em uma posição como a minha.


No caso, a posição de apresentar um texto. Num grupo de estudos ou de literatura, eu poderia ler o texto com vocês e dizer para vocês, perguntar se vocês leram e o que vocês acham, e provavelmente vocês falariam pouca coisa ou nada. Ficaria um silencio, e eu suportaria por um tempo, depois diria o que me aparece quando leio os trechos.


Mas quando falo da minha situação de estar doente eu não acho que estou em alguma posição peculiar. Inclusive, por volta de 1925, quando Virginia estava escrevendo esse ensaio, ela própria estava doente, coisa que era comum para ela. E o texto da Virginia fala a respeito disso já no primeiro parágrafo. Esse primeiro parágrafo é interessante em vários sentidos. É interessante até mesmo num nível meio técnico, porque, como introdução de um ensaio, um texto que, querendo ou não, não deixa de ser argumentativo, ele consegue logo de cara e em poucas palavras apresentar para o leitor todo o tema e questões que vão ser discutidas durante todo o texto. Você, que pode estar se preparando para escrever a sua monografia, se conseguir fazer a sua introdução ter algo de semelhante com esse primeiro parágrafo, ela já vai superar 90% dos textos acadêmicos.


Mas, parte desse primeiro parágrafo, a parte que eu li, diz o seguinte:


“Considerando como a doença é comum, que enorme é a alteração espiritual que ela provoca, como são surpreendentes, quando as luzes da saúde estão fracas, as terras ainda não descobertas que então se revelam, considerando que refugos e desertos da alma um ligeiro ataque de gripe põe às claras, que prados e precipícios salpicados de flores latejantes um pequeno aumento de temperatura faz ver, que velhos e obstinados carvalhos são desenraizados em nós no ato da doença, como afundamos pelo poço da morte sentindo as águas da aniquilação se fecharem por cima da cabeça e acordamos pensando que nos encontramos na presença dos anjos e dos harpistas ao arrancar um dente e voltar à tona na cadeira do dentista para confundir o “Lave bem a boca” que ele diz com a saudação da Divindade que se inclina do fundo do Céu para nos receber – quando pensamos em tudo isso e infinitamente mais, como com tanta frequência somos forçados a fazê-lo, parece realmente estranho que a doença não tenha encontrado o seu lugar, junto com o amor, o ciúme e a batalha, entre os temas primais da literatura.”

Pfff... Isso é só metade desse primeiro parágrafo. Aí já tem bastante coisa que se pode comentar. Mas eu queria saber uma coisa de vocês. Queria saber se vocês concordam com o que ela diz aqui.


*


Ela fala de muita coisa nesse trecho pequeno. Coisas inclusive que eu vejo, e não vou comentar, como por exemplo a demonstração de como falar de doença a partir da literatura se debruçando por metáforas ou imagens que se fundamentam no sensorial ao invés de algo que a gente chamaria de subjetividade, ou intelectualismo, ou mental. Mas, enfim... Como tem muita coisa nesse trecho que acabei de ler, essa pergunta de concordar ou não pode se aplicar a mais de uma coisa.


Vou tentar falar de só algumas para poupar tanto vocês quanto eu. Esse trecho pode se aplicar, por exemplo, na ideia de que estar doente é algo comum no cotidiano da vida. Vocês concordam?


*


Vocês conseguiram ver? O silencio que eu comentei a alguns minutos atrás? Agora eu vou falar o que eu acho. Eu concordo. Tanto por experiencia anedótica quanto pelos números. Eu não sou muito fã de estatísticas, mas tem uma que é daquelas coisas que são tão grandes que é difícil conseguir saber o tamanho. E ela é a seguinte: Nos últimos 2 mil anos, mais pessoas morreram de tuberculose do que o número total de pessoas que morreram se você combinar as mortes ocorridas em todas as guerras. Uma coisa que dizer “nos últimos 2 mil anos” pode fazer acontecer é você pensar que isso é, e também, faz, muito tempo. Você pode pensar que isso é coisa muito velha. Você pode pensar que no futuro diatópico do capitalismo tardio de 2023 a medicina está avançada, que não tem como isso ser verdade. Mas não é bem assim.


Mais pessoas morreram de tuberculose do que pessoas morreram em guerras no ano passado, e essa estatística se repete na ré de todos os anos até você chegar no ano da segunda guerra mundial. E a tuberculose é só uma dessas coisas que a gente chama de doença. Por pura curiosidade, eu perguntei para o google quantas doenças existem, e obviamente há várias respostas. Mas eu escolhi a resposta da fonte que ficaria melhor de se referências nessa minha monografia hipotética. Inclusive, eu acredito que uma discussão a respeito desse ensaio da Virginia pautada da psicologia, facilmente daria uma monografia, e com um pouco só mais de esforço daria uma dissertação, e se você decidir comentar mais livros e um pouco da vida da autora em relação a esse ensaio, disso sai uma tese. Mas eu direi a resposta da OMS, e: A OMS diz que existem mais de 10 mil doenças conhecidas.


Então, se só a tuberculose ganha da guerra, imagina se juntarem todas essas 10 mil doenças que foram cientificamente catalogadas. Outra estatística é que mais ou menos, haha... Eu gosto de falar de estatística e, logo em seguida, usar a expressão mais ou menos. Mais ou menos 93% das mortes são causadas por doenças. E, como esse número grande pode indicar, morrer por doença é tão comum, que, quando isso acontece, no laudo médico a causa da morte é descrita como “morte natural”.


Então a Virginia tá falando que doença é algo comum quando você tá nessa coisa de doido que é ser feito de pedaços de carbono e água que, de alguma forma vieram do espaço que se expande infinitamente, e, ao mesmo tempo, saber que você é feito de pedaços de carbono e água que, de alguma forma vieram do espaço que se expande infinitamente. E as constatações cientificas e a Virginia parecem que percorrem um caminho semelhante. Mas, enquanto a ciência fala disso em números absolutos que são muito difíceis de fato se compreender, a Virginia faz isso pelas palavras, no caso, pela literatura. Isso, que acabei de dizer, já é outro assunto, que não tô com muita energia de falar agora. Mas, especificamente a respeito de a doença ser algo comum na vida, como disse depois do silencio, eu, pelo menos, concordo. Não só concordo porque vivo. No caso, vivo doente.


Pô, um dos meus autores favoritos é o Edgar Allan Poe, outro vivente doente, que tem poemas como esse, e aqui eu cito:


“Graças aos céus! A crise / O perigo passou, e a doença persistente finalmente acabou /, e a febre chamada ''Viver'' finalmente foi vencida.”

Pra ele viver é doença, e estar doente é tão comum enquanto vivo que eu acho difícil de negar. Mas eu concordo do outro lado também. Concordo também porque as estatísticas me mostram. É como que, aos modos de Manoel de Barros, eu carregasse uma peneira em cada mão, escorrendo numa delas a ciência e na outra a poesia. O extrato que sobra é a massa de Nada com que eu moldo esculturas de palavras as quais eu acabei de construir agora. Enfim.


*


Outra coisa que essa pergunta de, se vocês concordam com esse trecho do primeiro parágrafo da Virginia pode apontar é isso de, estar doente ser algo que pode mudar a sua relação com as coisas. O que vocês acham? Vocês concordam com isso?


*


Acho que essa é mais fácil de responder né? Dado ao que já foi dito aqui a respeito de como é comum ficar doente, lembra? Aquela coisa toda da tuberculose. Ficar doente é comum, então, todo mundo aqui, em algum momento da vida já ficou doente. Por isso, acredito que todo mundo também tem algum dado empírico que pode tanto fazer concordar, quanto discordar dessa afirmação da Virginia. Então vocês concordam?


*


Eu, se não ficou claro ainda por tudo que já disse concordo absolutamente. Fazer algo e fazer algo doente são experiencias completamente diferentes. E esse “algo” que se faz não precisa ser necessariamente uma tarefa positiva. Pode ser simplesmente estar vivo, ou existir. E a experiencia é diferente porque a sua relação com as coisas é diferente. Tem os exemplos clássicos das pessoas que quando são diagnosticadas com alguma doença terminal mudam a sua forma de viver.


Não só pelas supostas limitações biológicas que a doença pode causar, mas também por, ao se perceber doente, também perceber outras coisas. Mas isso tá muito bem argumentado no texto da Virginia, então não vou falar muito a respeito dessa possibilidade. Vou falar de algo que talvez alunos de graduação de psicologia acreditem contemplar de fato a disciplina. Vou falar de algo que aconteceu em um atendimento clínico meu.


Uma vez eu estava atendendo uma pessoa que chegou com uma queixa a respeito do trabalho. Mas, tudo o que essa pessoa falava durante os atendimentos era a respeito do relacionamento dela. Mais especificamente a respeito da pessoa com a qual ela se relacionava. E, mesmo reclamando desse parceiro de relacionamento o paciente no fim das contas dizia que era de sua responsabilidade, a boa convivência entre os dois. Por exemplo, era por que o paciente não tinha maturidade emocional que as coisas não davam certo. Ou, era porque o paciente não conseguia atender a todas as demandas de seu parceiro de relacionamento que as coisas não dessem certo, e etc etc.


Eu escutava e entre uma oportunidade e outra que Kairos me proporcionava eu perguntava coisas que tentavam apontar a questão de o bem estar do relacionamento era de toda a responsabilidade do paciente. Se ele também acreditava que era possível controlar todas essas variáveis. Tentava estranhar a ideia de que parecia que desse modo a pessoa se relacionava sozinha com as demandas. E o atendimento continuou assim por um tempo.


Até que o paciente ficou doente.


Agora eu não lembro exatamente qual foi a doença que lhe aconteceu. Mas era algo mais grave que uma gripe, e menos fatal do que essa tuberculose. E não, não era covid. Mas, enquanto estava doente o paciente descreveu a relação de uma forma totalmente diferente. Dizia como o parceiro não dava espaço, ou não entendia que quem estava necessitado no momento era ele. O paciente também relatou ter visto como o parceiro era sem noção, ele dizia que achava um absurdo parecer ser impossível que o seu parceiro não notasse que ele não podia fazer as coisas porque estava doente. E eu ia acompanhando isso e perguntando como as coisas se deram. Não por necessariamente não acreditar no que estava sendo dito agora, ou até mesmo antes desse estar doente. Mas, me demorando nessas descrições, uma das minhas intenções era tentar fazer aparecer que no fim das contas o parceiro não mudou o comportamento dele. O que mudou foi o modo que o paciente via o próprio parceiro.


Apareceu que esse modo, que desde sempre esteve ali, assim como o céu azul, só teve oportunidade e tempo de aparecer quando o paciente ficou doente.


*


Outra coisa que essa pergunta de, se vocês concordam com esse trecho do primeiro parágrafo da Virginia pode apontar é o fato de a doença não ser um grande tema da literatura, assim como o amor, a guerra, o ciúme, como ela diz. Vocês concordam com isso?


*


Eeehhhhh... Bom... Eu... Eu acho que... Depende.


Depende.


Pra começar, algumas pessoas que comentam a respeito desse ensaio dizem que ele é o primeiro ensaio a respeito de estar doente, mais especificamente, a respeito de estar doente a partir de uma visada da literatura. O crítico de arte John Ruskin, tem um ensaio que tem o título Fiction, Fair and Foul, que eu sei la qual seria o melhor jeito de traduzir pra português. Poderia ser algo como Ficção, Justo e Faltoso. E nesse texto ele comenta como estar doente pode afetar a sua arte, mais especificamente, a arte de escrever. E, esse crítico literário tem uma visão muito diferente da Virginia em relação a isso. A Virginia gostava desse critico, ele aparece algumas vezes nos diários dela, inclusive ele aparece enquanto ela comenta a respeito desse ensaio dele. Mas, ainda sobre essa coisa da doença não ser tema da literatura, isso não é tão verdade assim.


Pode parecer uma surpresa, mas eu ainda não li todos os livros que foram escritos no mundo. Eu também não tenho uma memória fotográfica como o pássaro australiano, Pega, que realmente te pega se você entrar no território dele e não vai te esquecer nunca mais. Confesso pra vocês que não faço ideia de como os estudiosos desse passáro conseguem dizer que ele tem memória fotográfica, já que ele ataca quase todo mundo que invade o território dele, então ele não necessariamente precisa lembrar do rosto das pessoas. A ciência é incrível mesmo. Mas mesmo assim eu consigo me lembrar de alguns livros que falam de estar doente, como, por exemplo, a morte de Ivan ilitch. Ou, até mesmo notas de subsolo.


Esse exemplo em específico é interessante, primeiro porque vou aqui citar um trecho do Dostoievski numa disciplina que o Victor deu aula. Seguidamente porque, nesse trecho do primeiro parágrafo que a gente está aqui comentando, a Virginia diz o seguinte:


“Alguns romances, ocorreria a alguém pensar, seriam dedicados à gripe; poemas épicos, à febre tifoide; odes à pneumonia; breves poemas à dor de dente. Mas não;”

E em notas de subsolo tem um capítulo inteiro falando de dor de dente. O trecho é o seguinte:


“– Ha, ha, ha! Depois disso, o senhor sentirá prazer até numa dor de dente! – exclamarão rindo os senhores.
– E por que não? Existe mesmo prazer numa dor de dentes – responderei. – Um mês inteiro me doeram os dentes; sei o que é isso. Nessa situação, é lógico, a pessoa não se enfurece em silêncio, e sim põe-se a gemer. Mas tais gemidos não são sinceros, são gemidos sarcásticos, e no sarcasmo é que está a coisa toda. É nesses gemidos que se expressa o prazer do sofredor; se ele não sentisse prazer com isso, não gemeria. Este é um bom exemplo, senhores, vou desenvolvê-lo. Nesses gemidos se expressa, em primeiro lugar, toda a inutilidade de sua dor, humilhante para a nossa consciência; toda a legitimidade das leis da natureza, de que os senhores, certamente, podem fazer pouco caso, mas em conseqüência da qual os senhores sofrem, ao passo que ela não. Eles expressam a percepção de que é impossível encontrar para os senhores um inimigo, mas a dor está lá; a percepção de que os senhores, apesar de todos os Wagenheim, são inteiramente escravos de seus dentes; de que, se alguém quiser, seus dentes deixarão de doer; do contrário, doerão por mais três meses. E, finalmente, se os senhores ainda não aceitaram e continuam a protestar, só lhes resta, para seu consolo, surrar-se ou bater mais forte com os punhos na sua parede, e rigorosamente mais nada. Pois bem, é dessas ofensas sangrentas, dessas caçoadas anônimas, que se origina, por fim, um deleite que às vezes chega ao mais alto grau de voluptuosidade. Eu lhes peço, senhores, que, quando tiverem oportunidade, ouçam com atenção os gemidos do homem culto do século XIX sofrendo de dor de dente, lá pelo segundo ou terceiro dia do seu sofrimento, quando ele já começa a gemer de maneira diferente de como gemia no primeiro dia, isto é, não geme apenas porque lhe doem os dentes; ele não geme como um camponês grosseiro qualquer, e sim como um homem que foi atingido pelo desenvolvimento e pela civilização europeia, um homem “que renegou seu solo e as raízes populares”, como agora se diz. Seus gemidos tornam-se detestáveis, grosseiramente raivosos, e continuam por vários dias e noites. Mas ele mesmo sabe que os gemidos não terão utilidade alguma; sabe melhor do que ninguém que é em vão que ele tortura e irrita a si e aos demais; sabe que até a platéia que ele quer impressionar e toda a sua família já sentem repulsa ao ouvi-lo gemer, não acreditam nem um pouquinho na sua sinceridade e estão convencidas de que ele poderia gemer de outra maneira, mais simples, sem tremer a voz e sem bancar o original, de que ele está fazendo palhaçada de raiva, por pura maldade. Pois bem, a volúpia está precisamente em todas essas tomadas de consciência e nessas indignidades. “Estou incomodando todos vocês, arrebentando seus corações, não deixo ninguém dormir. Pois então não durmam, sintam também minuto a minuto que meus dentes estão doendo. Já não sou mais para vocês o herói que antes quis parecer, sou simplesmente um homenzinho desprezível, um chenapan. Que seja! Estou muito contente porque vocês me entenderam. Vocês acham terrível ouvir meus infames gemidos? Pois que seja terrível; e agora, para vocês, vou emitir uns garganteios ainda mais terríveis...” Ainda não entenderam, senhores? Não; pelo visto, é necessário desenvolver-se e adquirir consciência de maneira mais profunda e completa para compreender todos os meandros dessa volúpia. Estão rindo? Fico feliz, senhores. Naturalmente, minhas piadas são de mau gosto, irregulares, incompreensíveis e denotam minha falta de autoconfiança. Mas isso é porque eu mesmo não me respeito. Por acaso um homem com consciência pode ter algum respeito próprio?”

Fim da citação.


E a Woolf, muito provavelmente leu esse livro, já que, ela gostava muito dos autores russos. Inclusive escreveu alguns ensaios sobre ele, ensaios sobre como esses autores se diferem dos autores ingleses na arte de escrever. Outra coisa é que depois de ela ler Crime e Castigo ela escreveu em um dos diários dela o seguinte:


“É óbvio que ele [Dostoiévski] é o maior escritor já nascido.”

Não sei se ela mantem essa opinião a vida toda, mas sem dúvida, da pra ver que ela gostou do livro. Eu não posso garantir que ela tenha lido notas de subsolo já que eu mesmo não li todas as cartas, diários e ensaios dela, e também porque a Virginia, como toda pessoa sã não nascida na Rússia, não gastou tempo para tentar aprender russo. Então ela ficava refém das traduções. Por isso não posso garantir que ela tenha consigo algum exemplar traduzido de notas de subsolo apesar de toda essa admiração que ela tinha a respeito dos autores russos, e pelo Dostoievski também. Em todo caso, eu citei aqui só duas obras, mas a doença tá presente em infinitas outras.


Morte e doença sempre foram coisas muita presentes em textos do século 18, 19 e início do século 20, e continuam sendo presentes atualmente, tão presentes que Erika Wright, professora da faculdade de medicina do sul da Califórnia, e pesquisadora de quase tudo que você possa imaginar que tenha relação entre medicina como prática e construção histórica, no livro dela que em tradução livre tem o título de “Leitura para a saúde: narrativas médicas e o século XIX” ela diz que no século 19, no campo literário: “morte e doença estão em toda parte.”


Mas então, a Virginia tá aqui nesse primeiro parágrafo e, consequentemente, no restante do ensaio todo, já que esse primeiro parágrafo carrega a premissa do texto inteiro mentindo na sua cara? Eeehhh... Mais ou menos. Como eu disse: depende. Uhn... Pra mim ela tá falando disso em pelo menos duas instancias. Uma num sentido mais literário, e outra num sentido menos literal.


Vou começar pelo mais literário porque ele é mais técnico e por isso mais fácil. Eu não acho que, quando a Virginia fala que a doença não é muito representada na literatura, ela quer dizer a doença como coisa. Como um componente de uma narrativa. Inclusive, pra mim é justamente isso que ela está criticando. Ela está criticando uma a doença é massivamente utilizada como uma simples técnica literária. Nisso os autores falam só da doença e deixam de lado a experiencia de estar doente. A Virginia é contemporânea dos autores que vieram a ser conhecidos como modernistas. E foi esse grupo que tentou confeccionar uma espécie de literatura que funciona por si mesma, sem o auxilio dos andaimes de coisas como narrativas, temas, plots etc. No própria ensaio a Virginia diz que os leitores achariam que um romance consagra à gripe careceria de drama, no inglês, plot. Só pra citar um exemplo dessa opinião dela, ele disse o seguinte:


“O escritor parece constrangido, não por sua própria vontade, mas por algum tirano poderoso e sem escrúpulos que o escraviza, a fornecer um enredo, a fornecer comédia, tragédia, interesse amoroso e um ar de probabilidade embalsamando o todo tão impecável que se todas as suas figuras ganhassem vida, encontrar-se-iam vestidas até o último botão de seus casacos na moda da hora. O tirano é obedecido; o romance/livro é feito de uma vez. Mas às vezes, cada vez mais com o passar do tempo, suspeitamos de uma dúvida momentânea, um espasmo de rebelião, à medida que as páginas se enchem da maneira habitual. A vida é assim? Os romances devem ser assim?”

Enquanto pensava nisso, o trecho de um livro do John Green me apareceu. O John Green é outro cara que fala muito de doença porque ele experencia elas de uma maneira constante. Nesse livro, a personagem principal de um tipo de câncer e ele a acompanha constantemente, a tal ponto que quando alguém pergunta a história dela ela diz o seguinte:


— E aí? Qual é a sua história? — ele perguntou, sentando do meu lado, a uma distância segura.
— Já contei minha história para você. Fui diagnosticada quando…
— Não, não a história do seu câncer. A sua história. Seus interesses, passatempos, paixões, fetiches etc.
— Humm — murmurei.
— Não vá me dizer que você é uma daquelas pessoas que encarnam a doença. Conheço tanta gente assim… Dá até pena. Tipo, o câncer é um negócio em franco crescimento, certo? O negócio de tomar-as-pessoas-de-assalto. Mas é claro que você não deixou que ele saísse vencedor assim tão cedo.

O que parece pra mim é que a Virginia está apontando é que, a princípio e na maior parte das vezes, a literatura trata a doença como descrita pela personagem. A doença “encarna”. Tomando toda a história da pessoa. A pessoa se torna apenas o diagnostico e todo esse “negócio em franco crescimento,” e todo o usual prognóstico de uma patologia. A Virginia queria mais do que isso, ela queria encontrar um vocábulo que ela coubesse, ela queria se encontrar nisso. Uma linguagem que não é mera repetição ou instrumento narrativo. Mas que alcançasse a própria experiencia, de, por exemplo, ter dos de cabeça. Esse é mais ou menos o sentido mais literário dessa coisa. Disse que ele era o mais fácil. Sobrou o mais complicado, que é o menos literal.


Como disse mais cedo, eu sou doente. E nesse meu estado atual certas coisas parecem que fazem menos sentido, coisas como tentar construir uma espécie de narrativa para apresentar uma ideia ao invés de simplesmente apresentar a ideia. Por isso, eu vou dizer logo, sem fazer o caminho, o que eu acho desse texto, sem abrir a janela, sem arear... Haha.


Eu acho que a Virginia, nesse ensaio sobre estar doente ela nem tá falando sobre Sobre estar doente. Melhor dizendo, eu acho que o que ela está falando está para além de estar doente. Pra mim, o que a Virginia está tentando fazer aqui é ensinar o leitor a ler. E quando eu digo ler, eu não quero dizer apenas ler as palavras que estão no ensaio, ou nos textos que ela se refere, ou em outros livros. Como disse, pra mim escrever é pensar é ler é ver é escutar, e todos os vices e os versas. O que eu to me referindo quando digo que para mim a Virginia está tentando ensinar o leitor a ler. É ler a tecitura da vida. Ela tá tentando apontar ao leitor uma possibilidade de ver. E ela, claramente percebe que um dos caminhos possíveis para apontar essa possibilidade é através da doença. Ou melhor, da experiencia de estar doente.


*


Perai.


Deixa eu tentar fazer uma analogia para o que eu to tentando dizer aqui agora. Eu, como alguém que passou o final da adolescência e o início da fase adulta na UERJ. Já fui não só, oferecido, mas também discursado num nível acadêmico a respeito de drogas, de todos os tipos, sejam elas licitas ou ilícitas. Do café, passando pelo Rivotril à cocaína. Uma coisa que todas essas drogas tem em comum é que elas de alguma forma alteram a seu estado. Muitas pessoas bebem café por se sentirem mais energizadas e acordadas ou até aquecidas. Muitas pessoas bebem cerveja como uma espécie de tarifa a se pagar a um mediador social. Muitas pessoas usam ayahuasca, maconha, ou qualquer tipo de droga, as vezes por motivos que tangenciam o que se chama de espiritual, Mas uma coisa que todas essas drogas fazem é ter a capacidade alterar o seu modo de se relacionar com as coisas. Isso são coisas externas que podem causar efeitos internos. Mas, ao mesmo tempo, monges afirmam que meditar pode fazer a mesma coisa, e se não a mesma coisa, pode fazer coisa muito parecida. Alguns falam que não necessariamente a meditação, mas simplesmente alterar a forma que você respira pode alterar a sua percepção.


Ou seja, Você pode ficar doidão só de respirar. Isso não é uma coisa externa fazendo alteração. É você mesmo. Pra mim, esse apontamento da possibilidade do ver que a Woolf está tentando fazer nesse ensaio é a mesma coisa. Se não é a mesma coisa é algo muito parecido. Só que ao invés de usar uma droga como meio para te mostrar quando e como isso pode acontecer, ela está usando algo que pode ser ainda mais comum na vida cotidiana de cada um. Ela está usando o estar doente.


*


Mas o que isso tem a ver com a Virginia, apesar de saber muito bem que existem outros textos literários que já falaram a respeito de estar doente muito antes do ensaio dela ser publicado. Inclusive, dela saber que já existia pelo menos um outro ensaio a respeito de estar doente descrito a partir de um viés literário, ela dizer que é muito raro na literatura a doença ser tema? Ela está tentando fazer o leitor, e os escritores também, refletirem. Ela está tentando fazer o leitor se perguntar. Meio que se perguntar perguntas muito parecidas com essas que eu tentei fazer com vocês agora. Você lê o trecho do primeiro paragrafo e fica tipo: Será? Será mesmo que estar doente é uma experiencia super comum aos seres viventes que somos nós? Se isso é verdade, quando eu fico doente? E se eu fico doente, como eu fico doente? O que ficar doente faz em mim? Mas toda vez que estou adoecido estou doente? E como é estar doente? Será? Será mesmo que a literatura não comenta a respeito de estar doente? Se comenta, quais seriam esses textos? E se esses textos comentam, quais as diferenças entre eles?


Vocês que leram o texto podem perceber que esse tipo de movimento é mais ou menos o movimento que estar doente pode possibilitar, segundo a Virginia. É um tipo de coisa que é capaz de fazer você parar e ver coisas que talvez nunca tinha visto antes. Como o céu azul. Coisa que a todo o tempo está acima de nossas cabeças. E mesmo assim a gente tende a ignorar. Isso tudo sou eu completamente doente supondo, mas eu imagino que a Virginia queria era que todo mundo pudesse viver dessa maneira doente, sem necessariamente ser portador de algum vírus biológico. Apenas o vírus desse ver. Apenas esse vírus estranho que pode abrir espaço para esse estranhar. Esse se questionar. Questionamento esse que contesta suposições apriorísticas e se interessa. Se interessa por qualquer tipo de coisa a todo o tempo.


Por exemplo: O sobrinho da Virginia acabou se tornando um acadêmico. E ele usou uma das bolsas dele de pós pós pós pós doutorado para escrever uma biografia a respeito dela. E a certa altura ele comenta que quando a Virginia ia visitar ele e a sua família, antes a mãe dele avisava: Oh, a tia Virginia está vindo. E com isso todas as crianças se animavam, porque as crianças gostavam dela, diziam que ela era muito animada e conversava com as crianças de maneira muito boa, de maneira interessante. E eu acho que era interessante porque a própria Virginia se interessava pelas crianças. Não exatamente pelas crianças, mas pelos interesses das crianças.


Uma delas comenta que nesses encontros a Virginia sentava com as crianças e de maneira mais ou menos direta interrogava elas. Uma delas descreve essa interação. Ela, a criança, no vídeo que assisti um senhor de 230 anos, diz que a Virginia perguntou pra ele: “O que aconteceu com você nessa manhã?” E ele disse “Ué, nada.” Aí ela respondeu: “Ah, que isso, vamos lá, o que te acordou?” E ele respondeu: “Foi o sol. O sol na janela do meu quarto.” E pra isso ela pergunta: “Mas que tipo de sol? Um sol amigável? Um sol com raiva?” Eu nunca pensei num sol com raiva. Mas o sol pode tocar na sua pele com carinho ou com raiva. Uma pessoa que sofre queimaduras na praia sabe disso. Mas você não precisa queimar a pele dessa maneira doentia para saber. Você pode se interessar e questionar. E, para mim, o que a Virginia está tentando demonstrar nesse ensaio todo é isso. Essa possibilidade.


E ela fazer afirmações que de pelo fato, ou como diria Manoel de Barros, pela informação, não necessariamente verdadeiras, é uma espécie de convite para que o leitor possa se tornar doente, doente desse ver, e ler o ensaio dela assim como algum doente lê Shakespeare. No ensaio ela diz o seguinte:


“O arrebatamento é uma das propriedades da doença – sendo nós uns proscritos –, e é sobretudo de arrebatamento que precisamos para ler Shakespeare. Não é que devamos nos livrar da inteligência quando o lemos, mas sim que, estando nós de todo conscientes, a fama dele nos intimida, e todos os livros de todos os críticos amortecem em nós aquele súbito estalo de convicção de que nada se põe entre nós e ele, o que, se ilusão for, é mesmo assim uma ilusão útil, um prazer prodigioso, um estímulo fortíssimo para ler os grandes. Com tais zumbidos de crítica ao redor, podemos nos arriscar às nossas próprias conjecturas em particular, tomando notas na margem; mas saber que alguém já disse isso antes, ou que o disse melhor, quebra todo o encanto. A doença, em sua régia sublimidade, varre isso tudo para o lado, deixando-nos a sós com Shakespeare, e ao confronto de seu enfatuado poder com nossa enfatuada arrogância as barreiras vão sumindo, os nós se desfazem,”

Eu acredito que o que a Virginia quer que você faça com esse ensaio é lê-lo doente. Ler esse ensaio como ela apontou essa possibilidade de leitura dos textos de Shakespeare. Quer ver só um truque de mágica? Pega essa mesma citação que acabei de fazer e troca o nome Shakespeare por Virginia. Porque, de maneira muito parecida, ao você ser convocado ao ler um texto da Virginia, passam pela sua cabeça coisas como o fato dela ser uma escritora famosa, de que esse ou aquele critico já disse isso ou aquilo dela, já disseram tudo, inclusive já disseram muito melhor do que você poderia dizer. Outra coisa é que ela é tão famosa, que quase deixa de ser uma pessoa e vira uma espécie de totem literário. Virginia não pode ter se enganado nessa introdução, com certeza o que ela disse só pode ser factualmente verdadeiro.


Esses tipos de pressuposições são aos coisas que emuralham a visada a ponto de fazer construir barreiras que obstruem a possibilidade de um horizonte entre o leitor e aquilo que é lido. Entre você e o texto da Virginia. Entre você e uma possibilidade de ver. E ela diz o seguinte, e aqui eu cito novamente:


“A doença, em sua régia sublimidade, varre isso tudo para o lado, deixando-nos a sós com Shakespeare, e ao confronto de seu enfatuado poder com nossa enfatuada arrogância as barreiras vão sumindo, os nós se desfazem”

É obvio que eu vou dizer isso, e disse todas as outras coisas que já disse aqui hoje porque eu me encontro psicólogo, mas, para mim a disposição de um psicólogo não pode ser muito diferente. De certa forma estou dizendo aqui que um psicólogo deveria almejar a clinicar enquanto doente. Porquê da mesma forma que a fama de Shakespeare pode intimidar ao leitor. A fama de uma psicopatológica ou estado psicólogo classificado também pode intimidar um psicólogo. Da mesma forma que pilhas de textos de críticos a respeito de Shakespeare podem criar uma espécie de barreira entre aquele que le e o lido. Pilhas de instrumentalização técnica a respeito de doenças mentais e atendimento clinico podem criar uma espécie de barreira entre aquele que lê e o lido. E, da mesma forma que a doença pode de arrebatar a ponto de possibilitar o leitor a jogar todas essas preconcepções fora a ponto de conseguir alguma forma de aproxima e ir dissolvendo o nós.


Esse atender enquanto doente sob essa definição da Virginia pode te possibilitar suspender concepções apriorísticas e tentar se aproximar do sentido que o outro da na e para a própria experiência, a ponto de ir dissolvendo essa distância que é o nós. Mas vale lembrar que fazer isso, como a Virginia disse, não significa abandonar a inteligência. Ou seja, não significa abandonar esses outros saberes técnicos ou as coisas que o seu supervisor te diz ou as coisas que você aprendeu na universidade ou indo para congressos chatos ou lendo esses manuais. A questão é você não os usar como remédios que te anestesiam, levantam a cortina desse conto de fadas e te fazem esquecer que dá para viver enquanto doente.


Um escritor, chamado Ralph Waldo Emerson tem uma frase, que obviamente vangloria os escritores, já que ele é um, mas a frase é a seguinte:


“Na obra de um escritor genial, redescobrimos nossos próprios pensamentos negligenciados.”

Para mim, a tarefa do terapeuta, tanto como leitor, ou escritor, é a mesma. E como eu tô cansado eu vou parar por aqui. Essas foram algumas das coisas que apareceram para mim enquanto lia metade desse primeiro parágrafo desse ensaio da Virginia Woolf. É claro que tem mais coisas que esse trecho do primeiro parágrafo me faz pensar. Mas por hoje eu parar por aqui. Se vocês tiverem alguma dúvida, ou comentário, não só a respeito desse primeiro parágrafo, mas sobre o restante desse texto vocês podem fazer. Ou a gente pode ir embora também. Tomar uma água com gás. É isso.


 
 
 

4 Comments


Yan, obrigada pela aula. Victor, obrigada pela postagem. Vocês formam uma ótima dupla! 😊

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Paulo Braga
Paulo Braga
Jan 14, 2023

" Outra coisa é que depois de ela ler Crime e Castigo ela escreveu em um dos diários dela o seguinte: “É óbvio que ele [Dostoiévski] é o maior escritor já nascido.” " Dostoevskij causou forte impressão em intelectuais não-russos na primeira metade do século XX. Isto pode ter a ver com certo aspecto "selvagem", à impetuosidade e aos paroxismos de suas personagens, a seu fanatismo religioso e apocalíptico também. Polifonia/dialogismo à parte, de uma afirmação com aquela (não foi pública, foi em um diário) resultaria a impressão que Ms. Woolf leu pouco, o que não é verdade. Sem descontar a importância dele, sua obra é irregular para dizer o mínimo. n.b. Rogo a quem ler que não venha com essa de que estaria a reclamar…

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Paulo Braga
Paulo Braga
Jan 15, 2023
Replying to

Fã quando escritor, hater quando pregador.

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