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A Crise da Subjetividade e a Psicologia Fenomenológico-Existencial

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Fala galera da fenô, tudo bem com vocês? Bem vindos(as) à postagem de hoje, um convite para mergulharmos em um dos debates mais ricos e transformadores da Psicologia contemporânea. Vamos desvendar juntos a "Crise da Subjetividade" e como as "Psicologias Fenomenológico-Existenciais" surgem como uma resposta vital a essa crise. Nosso guia nesta jornada será um artigo instigante da Dra. Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo, intitulado "A Crise da Subjetividade e o Despontar das Psicologias Fenomenológicas", e um complemento essencial de Roberto Novaes de Sá sobre "A Noção Heideggeriana de Cuidado (Sorge) e a Clínica Psicoterápica".


Para começarmos, Ana Feijoo nos provoca com uma questão fundamental: até que ponto os alicerces da metafísica da subjetividade — essa ideia de um "eu nuclear", um centro fixo e isolado dentro de nós, e a dicotomia rígida entre nossa "interioridade" e o "mundo" ou a "totalidade" — se tornaram a espinha dorsal de boa parte das teorias e práticas psicológicas?

Pensem bem: essa concepção de um sujeito que se posiciona em oposição ao objeto, que é uma substância localizável no tempo e no espaço, com sentidos e determinações já dados, tornou-se praticamente hegemônica. O resultado? As psicologias, muitas vezes, se dedicaram a criar verdadeiras "cartografias do eu", baseadas em teorias que nem sempre tinham a consistência necessária.


A abrangência dessas filosofias da subjetividade na Psicologia, infelizmente, levou a um abandono quase total do horizonte de constituição do social, do político e da cultura. Ao ficarem presas à noção de um sujeito ensimesmado, essas abordagens desconsideraram a articulação primordial entre o ser humano e o mundo, desde a sua origem. Mesmo quando buscaram um apoio mais robusto nas ciências empíricas, adotando uma perspectiva positivista e reduzindo o psiquismo ao comportamento ou à estrutura biológica, a inconsistência persistiu, mantendo a noção de subjetividade em sintonia com uma estrutura comportamental questionável.


A Filosofia, já desde o final do século XIX, vinha anunciando a insuficiência dessas filosofias da subjetividade para lidar com a complexidade da existência humana. Essa crítica foi, de certa forma, absorvida pela Psicologia Existencial-Humanista, que se opunha à ideia de sujeito como um aparato psíquico ou unidade comportamental, preferindo denominá-lo "pessoa" para lhe devolver a dignidade. Contudo, e aqui está um ponto crucial levantado por Feijoo, mesmo com essa tentativa de diferenciação, essas correntes acabaram recaindo na mesma noção de sujeito que criticavam, mantendo referenciais idealizados pelas psicologias iniciais (Behaviorismo e Psicanálise). Elas continuaram a visar um maior conhecimento de si e a estabelecer um ideal psíquico a ser atingido, mantendo a Psicologia no âmbito meramente privado. Ou seja, também desconsideraram o horizonte mundano-relacional de todas as possibilidades existenciais humanas.


Para entender essa herança, precisamos reconstruir a concepção cartesiana da subjetividade moderna. René Descartes, um articulador do pensamento moderno, valorizou a razão, o indivíduo e a supremacia da vontade. Nas suas "Meditações Metafísicas", ele utilizou a dúvida metódica para alijar opiniões incertas e fundamentar um conhecimento seguro. Da dúvida sobre os sentidos, sobre os sonhos, e até da hipótese de um gênio maligno, emergiu uma única certeza: a existência do pensamento, o famoso "Cogito, ergo sum" – "Penso, logo existo".


A partir dessa certeza, Descartes concebeu a distinção entre a alma (natureza intelectual) e o corpo (extensão), afirmando que consistem em substâncias diferentes. A alma é uma "coisa pensante". Essa visão otimista de Descartes, que buscava um corpo de verdades teóricas, universais e necessárias, acabou por estabelecer a supremacia do sujeito em relação à verdade e o seu papel de fundamentação da certeza. Este "sujeito", uma consciência encapsulada em si mesma que se relaciona com o mundo exterior, é a gênese da moderna dicotomia entre sujeito e objeto.


As psicologias modernas herdaram essa visão. A Psicologia Científica buscou conciliar-se com o parâmetro da objetividade, estudando o "eu" como uma substância que pode ser mensurada ou mapeada, repleta de emoções, instintos e processos libidinosos. Contudo, essa noção moderna de sujeito sofreu um encurtamento significativo em relação à tradição grega, onde "sujeito" referia-se a todo ente subjacente. Com Descartes, passou a designar apenas o "eu" como suporte de todas as ações humanas, constituído a priori – o "eu egoico".


Vamos rapidamente revisitar as três grandes forças da Psicologia, à luz dessa crítica:


1. Behaviorismo (início do século XX): Eclodiu em oposição à psicologia acadêmica, priorizando o comportamento observável. Assumiu uma perspectiva científica e positivista, comprovando empiricamente suas verdades. O homem é determinado por seu comportamento, uma "tábula rasa" que, a partir do mundo externo, desenvolve comportamentos condicionados. A subjetividade é vista como passiva, um depositário de estímulos do meio, que depois de constituída, é substancializada e interiorizada, podendo ser mapeada. Watson buscava determinar o homem por estratégias pré-definidas.


2. Psicanálise (início do século XX): Também se opôs à psicologia da consciência, estabelecendo um aparelho psíquico dividido em dinâmicas consciente e inconsciente. Freud priorizou o inconsciente na formação do psiquismo humano, levando a um determinismo psicogenético com estruturas como id, ego e superego formando a personalidade. A clínica psicanalítica busca trazer à tona motivos inconscientes, novamente apontando para uma subjetividade nuclear que articula o interior com o exterior.


3. Psicologia Existencial-Humanista (meados do século XX): Surge em oposição às duas primeiras, visando superar a perspectiva moderna. Criticava o tratamento do homem como objeto, reduzido a partes, e buscava devolver-lhe a totalidade e a dignidade. Maslow rejeitava o positivismo, e Rogers enfatizava a "pessoa" em vez de "sujeito", focando na relação e respeito incondicional. Rollo May integrou o humanismo à Filosofia da Existência, destacando liberdade, responsabilidade, angústia. Apesar dos avanços, essa corrente, segundo Feijoo, recaiu nos pressupostos metafísicos que criticava, mantendo a substancialização do sujeito e focando em um ideal psíquico individual.


A crise é evidente! Então, qual é a saída? A proposta da Psicologia Fenomenológico-Existencial é buscar na rigorosa Fenomenologia de Husserl e na ontologia hermenêutico-fenomenológica de Heidegger os fundamentos para uma nova compreensão.


1. A Proposta de Husserl: Uma Fenomenologia Rigorosa Husserl nos convida a abandonar a "atitude natural" – aquela que toma a natureza como simplesmente existente, com sentidos e determinações previamente dados e acessíveis ao senso comum ou à teoria. Ele propõe a epoché, a suspensão dessa atitude natural, para nos aproximarmos do fenômeno sem pressupostos metafísicos. Isso significa não nos deixarmos levar por opiniões ou posições particulares, mas por reflexões críticas.


A Fenomenologia, com seu lema "rumo às coisas mesmas", exige que superemos todas as tendências metafísicas que criam teorias sobre os entes, esquecendo-se do sentido originário do ser. Para Husserl, a universalidade se constitui nos atos intencionais – a consciência é sempre consciência de algo, projetada para além de si mesma. O "eu" fenomenológico é um "fluxo de vivências intencionais" que reatualiza presente, passado e futuro, não uma substância fechada.


2. A Proposta de Heidegger: Uma Psicologia com Bases Ontológico-Existenciais Heidegger, com sua obra "Ser e Tempo", investiga o sentido do ser a partir do ente que pode perguntar sobre ele: o Dasein – o "Ser-aí". Ele critica a filosofia da subjetividade como carente de fundamentação, pois o interesse na ideia de sujeito leva ao "esquecimento do ser".


O Dasein não possui determinações essenciais fixas; sua única determinação é o caráter do poder-ser. Ou seja, o ser humano é fundamentalmente um projeto, uma possibilidade. A essência do Dasein reside em sua existência, e ele é sempre "meu", achando-se diante de uma região fenomenal própria.


O Dasein constitui-se como ser-no-mundo, uma unidade estrutural ontológica, onde homem e mundo são co-originários e inseparáveis. Essa estrutura inviabiliza o solipsismo e projeta o homem diretamente para uma relação com os outros e com o mundo. Mesmo que, de início e na maior parte das vezes, o Dasein se encontre em um modo "impróprio" ou "impessoal", ignorando sua liberdade, a angústia é o fenômeno que o lança diante da liberdade e da responsabilidade de singularizar-se.


Essa totalidade estrutural do Dasein, na unidade de sua cotidianidade e de suas possibilidades de transformação, é o que Heidegger denomina cuidado (Sorge). O cuidado não é um desejo ou uma atitude psicológica, mas a condição existencial de possibilidade do "cuidar da vida" e da "dedicação", no sentido ontológico originário. O Dasein, como "clareira" (Lichtung) onde o ser dos entes se revela, transforma o mundo a cada transformação de si.


Com a noção de Cuidado (Sorge) de Heidegger, entramos no cerne da aplicação clínica e social da Psicologia Fenomenológico-Existencial. Como nos lembra Roberto Novaes de Sá, o Cuidado fornece à prática terapêutica uma base ontológica que transcende tanto a teorização científica quanto uma concepção humanista meramente subjetivista e sentimental.


A Doença como Restrição da Liberdade e Distúrbio do Sentido: Para a Daseinsanalyse, um modo de ser "doente" não é caracterizado por um conteúdo positivo, mas pela privação e limitação das possibilidades de relação do homem no mundo, ou seja, de sua liberdade. É quando o Dasein se encontra restringido a um modo específico de correspondência, impossibilitado de atender a outros apelos de sentido. Um distúrbio ou crise acontece quando o limite de abertura ao sentido do Dasein é seriamente questionado por uma demanda que não se satisfaz, evidenciando essa restrição da liberdade. A psicoterapia, nesse contexto, torna-se um espaço para acolher e concentrar esse questionamento, ajudando o Dasein a sustentar a questão até que novas possibilidades de correspondência surjam.


O "Ser-com" e a Crítica à Transferência: Heidegger diferencia dois modos fundamentais de Cuidado (Sorge):


1. Ocupação (Besorgen): Direcionada aos entes intramundanos cujo modo de ser se revela pela utilidade instrumental.


2. Preocupação (Fürsorge): Direcionada aos entes que têm o modo de ser do Dasein, ou seja, outros seres humanos. O "ser-com" (Mitsein) é uma dimensão ontológica constitutiva do Dasein; cada Dasein já é sempre "no-mundo-com-o-outro".


Nessa perspectiva, a noção psicanalítica de "transferência" é questionada. Heidegger argumenta que "não é necessário ocorrer nenhuma transferência, porque a respectiva disposição, a partir da qual e em relação a qual, somente, tudo que vem ao encontro pode mostrar-se, já está sempre lá". A pré-compreensão em que o Dasein se encontra é intrinsecamente orientada por uma "tonalidade afetiva" (Stimmung), que não é um fenômeno psicológico, mas um existencial fundamental. A relação afetiva entre cliente e terapeuta, crucial na clínica, é assim compreendida de uma maneira mais simples e rigorosa, sem a necessidade de construções metapsicológicas complexas.


Na "preocupação" (Fürsorge) com o outro, distinguimos dois modos extremos de "ser-com":


• A "preocupação que substitui" (einspringt): O terapeuta assume as "ocupações" do outro, podendo gerar dependência.


• A "preocupação que se antepõe" (vorausspringt): O terapeuta não substitui, mas coloca o outro diante de suas próprias possibilidades existenciais, ajudando-o a tornar-se transparente a si mesmo e livre. Este é o modo que se alinha com o cuidado propriamente dito na clínica.


Repercussões Sociais: A Psicologia Fenomenológico-Existencial, ao reenraizar a subjetividade em uma estrutura originária mais ampla – a relação primordial entre homem e mundo – tem um impacto profundo na compreensão do social. Ela supera a dicotomia homem-mundo e a supervalorização do individual, reconhecendo que homem e mundo são indissociáveis e co-originários.


A angústia, o tédio, o temor que o homem vivencia, muitas vezes se encontram no que foi socialmente constituído. Assim, podemos deslocar o foco do meramente individual para uma psicologia que tome como centro o que se constitui no âmbito do coletivo. Heidegger adverte sobre os perigos de uma época dominada pela técnica, onde o homem esquece o sentido de sua existência, que é sempre compartilhada. A Psicologia Fenomenológico-Existencial, com ênfase no social, busca justamente descobrir as estruturas de resistência de nossa época para vislumbrar a possibilidade de quebrar essas determinações.


E assim, chegamos ao fim de nossa jornada. Vimos como a Psicologia, em grande parte de sua história, foi moldada por uma concepção cartesiana de um "eu" isolado e substancial, gerando contradições e limitações em sua capacidade de compreender a complexidade da existência humana. As "três forças" da psicologia – Behaviorismo, Psicanálise e até mesmo a Existencial-Humanista – apesar de suas inovações, não conseguiram escapar totalmente dessa premissa.


No entanto, a Fenomenologia de Husserl e a ontologia de Heidegger nos oferecem um novo horizonte. Ao suspender as premissas metafísicas e focar no "eu" como um fluxo intencional de vivências, e no Dasein como "ser-no-mundo" e "Cuidado", compreendemos o ser humano em sua intrínseca relação com o mundo e com os outros. A clínica se transforma em um espaço de "preocupação que se antepõe", ajudando o indivíduo a se abrir para suas próprias possibilidades.


Esta Psicologia Fenomenológico-Existencial, com sua ênfase no social e na co-originalidade homem-mundo, nos convida a repensar não apenas as teorias e práticas clínicas, mas a própria forma como concebemos a existência humana em sua totalidade, em um horizonte de sentidos compartilhados e de responsabilidade coletiva. É uma porta aberta para uma Psicologia mais profunda, abrangente e verdadeiramente humana.


Essa postagem surgiu a partir das discussões do nosso Curso de Introdução à Psicologia Fenomenológico-Existencial. Acesse a página do curso e tenha acesso a mais informações.


Muito obrigado pela sua atenção e por compartilhar conosco este momento de reflexão. Até a próxima!


Referências:

Feijoo, A. M. L. C. D. (2011). A crise da subjetividade e o despontar das psicologias fenomenológicas. Psicologia em estudo16, 409-417.


De Sá, R. N. (2000). A noção heideggeriana de cuidado (Sorge) e a clínica psicoterápica. Veritas (Porto Alegre)45(2), 259-266.

 
 
 

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